Com o Livre na Assembleia da República, a cabeça de lista do partido por Lisboa, que é também a primeira mulher negra a concorrer ao Parlamento, acredita que “os cidadãos e as famílias portuguesas vão estar em primeiro lugar”.
Mulher negra, gaga, feminista, anti-racista. Joacine Katar Moreira não tem medo de esconder aquilo que é, aliás, acredita que isso é uma força na sua candidatura pelo Livre nestas eleições Legislativas.
Em pleno século XXI, a cabeça de lista do Livre por Lisboa é também a primeira mulher negra a concorrer à Assembleia da República, considerando que, para além de “uma enorme responsabilidade” é, simultaneamente, “uma grande alegria”.
“Estava na hora de avançarmos no sentido de a Assembleia da República começar a ser a imagem das nossas sociedades. Necessitamos de uma Assembleia onde todas as vozes são representadas, onde todas as reivindicações estão representadas”, afirma Joacine numa entrevista ao ZAP.
“Mais uma vez, mostra que o Livre é um partido que interessa e que tem um olhar e uma perspetiva muito mais avançada e futurista do que a maioria porque, até hoje, nenhum partido político da esquerda ou da direita ousou apostar em alguém de uma minoria étnico-racial como cabeça de lista no círculo de Lisboa. Isto não é apenas o início de uma nova era, é o início de uma revolução”.
Mas chega de falar de si. Joacine quer é falar do partido, que concorre pela segunda vez às Legislativas, acreditando que é desta que vão ter um bom resultado. Em 2015, recorde-se, o partido fundado por Rui Tavares obteve 39.340 votos (0,73%).
Foi precisamente o fundador do Livre que, em 2015, considerou ser necessário haver uma “convergência à esquerda”. “Há quatro anos, nós defendemos exatamente isto. Era necessário haver uma união, uma convergência à esquerda, para evitar que mais uma vez houvesse hipótese de um aumento de colapso orçamental, falta de coesão, emigração, endividamento e despedimentos. Era necessário nessa época que existisse uma convergência para salvar o país de mais um Executivo de direita”, recorda a candidata.
Uma ambição que se tornou uma realidade, depois do acordo alcançado entre PS, PCP e BE para formar a chamada geringonça. Por isso, Joacine Katar Moreira acredita que não cabe ao Livre formar Governo com o PS, embora tenha a consciência de que se podia chegar a um entendimento caso, claro, forem respeitados vários objetivos.
Salário mínimo e lei da nacionalidade
Começamos por falar da proposta que prevê o aumento do salário mínimo nacional para 900 euros, que iria exigir o aumento de 10% ao ano no âmbito desta nova legislatura.
“O ordenado mínimo de 900 euros não é algo de extraordinário, é um ordenado que, no âmbito da União Europeia, nem sequer é um ordenado alto. O que está em causa é que não tem havido vontade política para um aumento efetivo que também tenha impacto real na vida quotidiana das famílias”.
A candidata do Livre dá o exemplo de Espanha, onde o salário mínimo é de 1050 euros e que foi aumentado em 165 euros num único ano. “Havia muitos economistas e especialistas a dizer que iria originar um colapso orçamental e que iria reduzir a produtividade. Até ao exato momento, isso não aconteceu. Houve a oportunidade de retirar pessoas de uma situação de sobrevivência, de dar uma resposta dignificadora aos cidadãos, não só pelo seu trabalho mas também pela sua contribuição”.
Outra medida fundamental para o Livre é a alteração da atual legislação da nacionalidade. O partido defende que “quem nasce em Portugal deve ter direito automático e imediato à nacionalidade portuguesa“.
“Trata-se de salvaguardar os direitos humanos. A atual legislação não faz sentido nenhum, pois exige que só após dois anos é que se pode adquirir a nacionalidade. É uma legislação que só tem como resultado infernizar a vida e dá a ideia de que há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda”.
“Há cidadãos que, de cada vez que têm de renovar os seus documentos, têm de incluir um registo criminal do país de origem, que normalmente é o país dos seus progenitores. Ou seja, um indivíduo nascido em Portugal, se tem um pai cabo-verdiano, na renovação da sua documentação, tem de entregar ao Estado português um registo criminal emitido em Cabo Verde, mesmo que nunca tenha lá estado”, critica.
Joacine deixa ainda outro exemplo: pessoas nascidas entre 1981 e 1996 que, por causa da alteração da legislação, tinham nacionalidade portuguesa e que, depois de 1981, “na renovação do seu documento, foram informados de que afinal não eram nacionais”. “Estas pessoas também precisam de receber a sua nacionalidade de forma retroativa”, lembra.
Investimento no SNS e na escola pública
A candidata do Livre não tem dúvidas de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) precisa de investimento, que se traduz “na melhoria dos hospitais e dos equipamentos”, mas também na “contratação de mais profissionais”. “Há milhares de portugueses sem médico de família. Eu sou uma destas pessoas que está há onze anos sem um médico”, conta ao ZAP.
No entanto, Joacine lembra ainda uma das principais medidas do Livre: a universalização do acesso à saúde mental, que considera estar “totalmente relacionada com o bem-estar, com a coesão social, com a economia, com a participação política e com a educação”.
“A saúde mental e a saúde física são uma única. O Estado não pode investir na saúde física e não dar respostas objetivas e universais no que diz respeito à saúde mental. Está na hora de enquadrar e integrar os psicólogos em todos os centros de saúde“, declara.
No campo da educação, a candidata afirma, por sua vez, que “é necessário revolucionar a escola pública, alterar os currículos, descolonizar os manuais de História e combater o abandono e o insucesso escolar”.
“Exigimos uma escola que esteja mais em consonância com as necessidades do século XXI, ou seja, uma escola mais focada nos alunos e nas suas aptidões e que, ao mesmo tempo, reconhece e valoriza as diferenças de cada um”.
“É necessário não dar tanta ênfase à parte curricular que universaliza, hierarquiza e tem contribuído para a ideia de que há maus e bons alunos. Parece que há alunos para ensinar e há alunos para educar. E nisto entra também a necessidade de combater o chamado racismo institucional“.
Joacine dá o exemplo dos cursos técnico-profissionais no Ensino Secundário, afirmando que há grandes diferenças em escolas situadas onde há uma maior incidência de minorias étnico-racionais.
“Algumas escolas onde há minorias étnico-racionais e comunidades mais desfavorecidas, estas ofertas técnico-profissionais não têm como objetivo manifestar expectativas altas do Estado. São ofertas como cabeleireiro, jardineiro, barman… Áreas que não têm continuação para a Universidade”.
Por outro lado, contrapõe Joacine, “temos escolas, não inseridas nos bairros mais pobres, em que já existem ofertas que dão a oportunidade de, se o aluno desejar, poder aprofundar o seu conhecimento entrando na Universidade. Ofertas como técnico de informática, técnico na área da medicina dentária, técnico na área das análises clínicas”.
“É a isto que nós damos o nome de racismo institucional. O Ministério da Educação dá determinadas ofertas formativas de acordo com aquilo que acha serem as expectativas altas e baixas em relação a certos alunos”.
Combater a precariedade e as alterações climáticas
Questionada sobre a política laboral, a candidata do Livre defende que o “Estado precisa de ser o maior inspirador nacional” e que “não pode continuar a ter funcionários em regime de precariedade, de instabilidade e de exploração permanente”.
Um desses casos está a acontecer, na sua opinião, nas universidades portuguesas. “É preciso valorizar o conhecimento científico e o trabalho dos investigadores. Não faz sentido absolutamente nenhum o investimento que o Estado faz para que existam universidades e de licenciaturas e, depois disto, deixa estas pessoas numa situação de sobrevivência e de alta instabilidade. Da mesma maneira que falo dos investigadores, falo também dos enfermeiros que auferem ordenados miseráveis”, afirma.
No campo do ambiente, uma das temáticas que, a pouco e pouco, foi ganhando cada vez mais relevância no panorama nacional, Joacine Katar Moreira diz que o lema do Livre é ter “uma sociedade justa num planeta saudável” e, para isso, volta a puxar do aumento do salário mínimo.
“Um indivíduo com este ordenado mínimo nacional não tem possibilidades de efetuar escolhas ambientais e ecológicas. Tem um ordenado que apenas lhe dá a hipótese de se esforçar para tentar sobreviver. Por isso, até o salário mínimo nacional está relacionado com as questões ambientais”.
A candidata coloca em cima da mesa o Novo Pacto Verde, um conceito muito falado nos Estados Unidos e no resto da Europa e que descreve ser “uma espécie de New Deal, mas para o ambiente”.
“Isto iria exigir um investimento de milhares de milhões no ambiente, mas não há ecologia se não houver investimento. O objetivo é que o Governo, no quadro da União Europeia, possa defender o Novo Pacto Verde e possa exigir que esse investimento seja feito o mais urgentemente possível”.
“Precisamos de um Governo que se transforme e que se mostre verdadeiramente ecológico e ambientalista para conseguirmos a neutralidade carbónica e para iniciarmos a transição energética. No que diz respeito ao plano nacional, é também necessário que haja uma orçamentação, isto é, que faça parte do Orçamento do Estado uma percentagem para mudar a forma como nos comportamos em relação ao ambiente: fiscalizar mais, contribuir para a alteração de hábitos, aumentar legislação amiga do ambiente, entre outros”.
Sobre a atuação deste Governo nos últimos quatro anos, Joacine diz que “houve um investimento na economia e nas finanças, mas deixou-se as pessoas em segundo lugar” e que, por isso, “embora a geringonça tenha funcionado, não funcionou plenamente”.
“Estávamos à espera que houvesse um aumento real do salário mínimo, de uma melhoria da vida dos trabalhadores, de um maior combate à especulação imobiliária. Nestes últimos quatro anos, houve muitos despejos e uma especulação que afastou milhares de pessoas das suas cidades e das suas casas. Houve muitas manifestações, desde os motoristas, os professores, os investigadores”, recorda.
Joacine disse em tempos que gagueja quando fala, mas não quando pensa. Com o Livre no Parlamento, a candidata quer assegurar que a próxima legislatura “coloca os cidadãos e as famílias portuguesas em primeiro lugar”. Vamos ver o que lhe reservam os resultados do próximo dia 6 de outubro.