Boris Johnson está de saída do “melhor emprego do mundo”. E agora?

Tolga Akmen / EPA

O primeiro-ministro britânico não resistiu a todas as polémicas e anunciou a sua demissão. Para trás, deixa um legado recheado de polémicas e escândalos e para a frente, deixa vários desafios a quem lhe suceder.

Depois de muitas polémicas e apelos à sua saída, Boris Johnson acabou mesmo por se demitir da liderança do Partido Conservador e vai abandonar o cargo de primeiro-ministro britânico quando for encontrado um sucessor.

No discurso à porta de Downing Street onde anunciou a demissão, o ainda chefe do Governo britânico admitiu que perdeu o apoio dos deputados do seu partido.

“É agora evidente que é da vontade do partido parlamentar Conservador que haja um novo líder desse partido e, portanto, um novo primeiro-ministro, e concordei com sir Graham Brady, presidente dos nossos deputados, que o processo de escolha de um novo líder deve começar imediatamente”, revelou.

O líder Conservador lembrou os momentos altos da sua liderança, como a vitória esmagadora que conseguiu nas eleições legislativas de 2019, onde o partido obteve a maior maioria parlamentar desde 1987, quando Thatcher era primeira-ministra.

Sendo um dos rostos mais ligados à campanha do Brexit, Johnson disse também sentir um “enorme orgulho” por ter liderado o país durante a saída da União Europeia e assinalou também o papel de liderança assumido pelo Reino Unido na resposta do Ocidente à guerra na Ucrânia.

“Deixem-me dizer ao povo da Ucrânia que sei que nós, no Reino Unido, vamos continuar a apoiar a vossa luta pela liberdade, durante o tempo que for necessário”, garantiu. Entretanto, Volodymyr Zelenskyy já reagiu à saída de Johnson, dizendo que o primeiro-ministro é um “grande amigo da Ucrânia“.

Johnson revelou que o calendário para a escolha do seu sucessor será divulgado na próxima semana e confirmou que quer manter-se como líder do Governo “até um novo líder estar em funções”.

Esta decisão está já a ser contestada e o líder dos Trabalhistas, Keir Starmer, já ameaçou mesmo convocar uma moção de censura para exigir a saída imediata do chefe do Governo.

Boris também explicou que nos últimos dias, durante a debandada no Governo britânico, tentou convencer os seus Ministros de que uma mudança no elenco de Downing Street num contexto de crise e guerra na Europa era uma ideia “excêntrica” e atirou farpas aos colegas no partido, dizendo que o “instinto de rebanho em Westminster é poderoso”.

“Lamento não ter sido bem-sucedido em apresentar esses argumentos [aos ministros] e é doloroso não poder avançar com tantas ideias e projectos”, confessou, realçando que sente muita “tristeza” por ter de sair “do melhor emprego do mundo”. “Acima de tudo, quero agradecer à população britânica, pelo enorme privilégio que me deu. Ser primeiro-ministro é, em si mesmo, uma formação”, agradeceu.

Mesmo assim, lembrou que em política ninguém é “minimamente indispensável” e mostrou confiança na capacidade do “sistema darwinista” britânico em “produzir mais um líder”.

Um legado de polémicas

A saída de Boris Johnson chegou esta quinta-feira, mas é caso para a dizer que já há meses que a morte política do primeiro-ministro era anunciada.

O início do mandato foi em grande, com os Conservadores a conquistarem a maior maioria desde o mandato de Margaret Thatcher, com o homem que se tinha tornado sinónimo do Brexit ao seu leme.

Num tema que dividiu a sociedade inglesa e até os próprios políticos Conservadores, Boris Johnson viu uma oportunidade para conquistar uma enorme vitória sob uma única promessa — Get Brexit Done.

E essa foi uma promessa que cumpriu. A 31 de Janeiro de 2020, o Reino Unido saiu oficialmente da União Europeia, com Johnson a prometer que ia provar que os “cépticos e os profetas da desgraça” estavam errados e que mais ninguém se atreveria a “apostar contra o Reino Unido”.

Mas o processo não foi tão fácil como o primeiro-ministro tinha dado a entender.  Entre polémicas sobre a protocolo da Irlanda do Norte, os conflitos com a França por causa das pescas ou a escassez de produtos essenciais causada pela falta de camionistas e pelos bloqueios na fronteira, foram vários os problemas trazidos pelo Brexit que puseram em causa a credibilidade do Governo de Londres.

E estes problemas foram só o início. A resposta de Downing Street à pandemia também foi alvo de fortes críticas, já que o Governo inicialmente mostrou-se adepto da busca pela imunidade de grupo e recusou ordenar um confinamento.

Contudo, o contexto rapidamente mudou quando um estudo do Imperial College concluiu que 81% da população podia ser infectada, havendo uma previsão de 250 mil mortes. O país rapidamente mudou de estratégia, mas a inacção no início valeu uma chuva de críticas aos responsáveis políticos. No total, já mais de 180 mil pessoas morreram devido à infecção pelo coronavírus no Reino Unido.

Se em público os políticos estavam a apelar à responsabilidade da população e a proibir grandes aglomerações de pessoas, em privado a história já era outra.

Em Dezembro de 2021, começaram a ser publicadas fotografias e relatos de várias festas organizadas em Downing Street quando o resto do país estava confinado, tendo os líderes políticos desrespeitado as leis que eles próprios impuseram ao resto da população.

Assim nasceu o partygate, provavelmente o escândalo que mais capital político custou a Boris Johnson e que começou a alimentar o coro de apelos à sua demissão, tendo havido até deputados a afirmar que foram alvo de ameaças por quererem o afastamento do primeiro-ministro.

O aguardado relatório da funcionária pública Sue Gray também não ajudou o Boris em nada, com Gray a responsabilizar a liderança do Governo pelas festas, a detalhar agressões entre funcionários bêbados e insultos à equipa de limpeza.

Apesar de ter inicialmente negado saber que as reuniões em Downing Street eram de cariz social, Boris ficou, literalmente, mal na fotografia, quando foram divulgadas imagens que mostravam o primeiro-ministro sem máscara e sem distanciamento social a conviver com outras 19 pessoas em Maio de 2020. O líder Conservador terá também dado uma festa de aniversário.

As desculpas ao público valeram pouco e foi até aberto a um inquérito na Câmara dos Comuns para se apurar se Boris mentiu ao Parlamento, uma ofensa que lhe valeria a perda do mandato. As festas acabaram até por ser investigadas pela polícia e o primeiro-ministro, assim como outros membros do Governo foram multados.

Já na imigração, o Governo de Johnson não tem sido poupado, especialmente depois de um naufrágio no Canal da Mancha ter levado à morte de 31 migrantes que faziam a travessia de França. O plano de deportação dos requerentes de asilo para o Ruanda suscitou fortes críticas e teve inclusivamente de ser bloqueado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Já o acolhimento de ucranianos também não está a decorrer como devia e há relatos de escravatura e de tráfico sexual.

O escândalo de lobbying que abalou o Partido Conservador não fez favores a Boris, depois de o caso de Owen Paterson — que quebrou as regras durante o seu trabalho no sector privado, tendo usado a sua influência como deputado para beneficiar duas empresas onde trabalhou — ter suscitado questões sobre a corrupção no país.

Boris não ficou isento, tendo os jornais noticiado que a vila de luxo em Espanha onde passou férias estava ligada a propriedades detidas pela família de Zac Goldsmith, que está envolvida num esquema de fuga aos impostos.

Esta não foi a primeira vez que as férias do primeiro-ministro foram escrutinadas, depois de este ter sido criticado  devido a uma viagem às Caraíbas que foi financiada por um doador dos Conservadores. Também não se sabe de onde veio o dinheiro para pagar as renovações ao apartamento de Johnson em Downing Street, que alegadamente custaram 200 mil libras, havendo suspeitas de que o doador Conservador Lord Brownlow terá ajudado a financiar as obras.

Depois das duas recentes derrotas eleitorais gota de água final foi a revelação de mais acusações de assédio sexual contra o deputado Chris Pincher, que foi recentemente promovido por Boris Johnson. O primeiro-ministro admitiu que sabia das queixas quando promoveu Pincher, o que motivou a debandada de mais de 50 membros do seu Governo que acabou por ditar a sua demissão.

A escolha do sucessor

Vai agora ter início o processo de escolha do novo líder dos Conservadores, que pode demorar várias semanas, explica o The Guardian. Inicialmente, os interessados em concorrer têm de apresentar a sua candidatura à liderança do partido e para isso, precisam de ter o apoio de oito deputados.

Depois disso, os deputados realizam várias rondas de votação para, progressivamente, se irem eliminando candidatos. Na primeira volta, os candidatos com menos de 18 votos são eliminados e na segunda, o mínimo já é de 36 votos. Se todos os candidatos cumprirem o mínimo, aquele que tiver menos votos é eliminado.

As votações vão-se repetindo até haver apenas dois candidatos, que poderão então fazer campanha. Os finalistas serão sujeitos a uma votação por correspondência de todos os membros do Partido Conservador.

O vencedor será o novo líder e será nomeado o primeiro-ministro de facto. O sucessor de Boris Johnson poderá convocar eleições antecipadas se assim entender, mas não é obrigado a fazê-lo.

Os desafios do novo líder

De momento, as casas de apostas já estão a borbulhar com os nomes que podem suceder a Boris Johnson. Dominic Raab, número dois do Governo, já anunciou que está fora da corrida.

Um dos nomes mais fortes é o de Penny Mordaunt, antiga secretária de Estado da Defesa que foi demitida por Boris por ter apoiado o seu adversário Jeremy Hunt nas eleições internas.

Rishi Sunak e Sajid Javid, os ex-Ministros das Finanças e da Saúde que foram os primeiros a demitirem-se na sequência do Pinchergate, também estão na calha, apesar do primeiro ter sofrido uma quebra na popularidade devido aos escândalos relacionados com a fortuna da família, possível evasão fiscal e os negócios da esposa na Rússia.

A actual Ministra dos Negócios Estrangeiros e considerada uma “Thatcher 2.0”, Liz Truss, é outro dos nomes apontados. O Ministro da Defesa, Ben Wallace, que ganhou protagonismo com a guerra na Ucrânia e o próprio Jeremy Hunt estão na lista, assim como Nadhim Zahawi, que Boris escolheu para suceder a Sunak nas Finanças, e Tom Tugendhat, presidente do Comité Conservador dos Negócios Estrangeiros.

Independentemente de quem sair vencedor, o sucessor de Boris Johnson já pode contar com vários desafios. Com o país mergulhado numa crise à boleia da inflação — que já obrigou muitos britânicos inclusive a cortar na comida e saltar refeições —, a economia certamente será uma prioridade a ter em conta, especialmente depois de o ainda primeiro-ministro ter delegado as “grandes decisões orçamentais” para quem lhe suceder em Downing Street.

A gestão da guerra na Ucrânia e as relações com a Rússia também serão outro ponto a ter em atenção, especialmente devido ao apoio diplomático e armamento que Londres tem dado a Kiev. Vários políticos russos também já se regozijaram na queda de Johnson, dizendo que o “palhaço estúpido” finalmente teve o seu “fim inglorioso”.

Por fim, o vencedor terá também em mãos a responsabilidade de limpar a imagem de elitismo e corrupção que foi criada em torno dos políticos de Westminster, especialmente dentro do Partido Conservador.

Adriana Peixoto, ZAP //

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