A capacidade de prevenir a próxima pandemia está a ser prejudicada pelas teorias da COVID

A conclusão baseada em evidências de que a pandemia da COVID terá começado com um vírus que saltou de animais para humanos destaca o risco que enfrentamos cada vez mais. No entanto, a nossa capacidade de impedir ou nos prepararmos para pandemias continua a ser prejudicada.

No final de junho, o Grupo Consultivo Científico para as Origens de Novos Patógenos (SAGO), um grupo de especialistas independentes convocado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou uma avaliação das origens da COVID.

O relatório concluiu que, embora não saibamos conclusivamente de onde veio o vírus que causou a pandemia, “uma origem zoonótica com transmissão de animais para humanos é atualmente considerada a hipótese mais bem fundamentada”.

O SAGO não encontrou evidências científicas que sustentassem “uma manipulação deliberada do vírus em laboratório e subsequente violação da biossegurança”.

Isto segue uma série de relatórios e artigos de investigação desde os primeiros dias da pandemia que chegaram a conclusões semelhantes: a COVID provavelmente surgiu de um animal infetado no mercado de Huanan, em Wuhan, e não foi resultado de uma “fuga” de laboratório.

Mas as teorias da conspiração sobre as origens da COVID persistem. E isso está a prejudicar a nossa capacidade de prevenir a próxima pandemia.

Ataques à investigação

Uma equipa de especialistas publicou, em 2020, um artigo na revista Nature Medicine  sobre as origens do SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID.

Tal como a SAGO, foram avaliadas várias hipóteses sobre como um novo coronavírus poderia ter surgido em Wuhan no final de 2019. Concluiu-se que o vírus muito provavelmente surgiu através de uma transmissão natural de animais – uma “zoonose” – causada pelo comércio não regulamentado de animais selvagens na China.

Mas esse artigo tornou-se um ponto focal de teorias da conspiração e ataques políticos – lamentam os investigadores, no The Conversation.

A ideia de que o SARS-CoV-2 se possa ter originado num laboratório não é, em si, uma teoria da conspiração. O estudo de 2020 considerou seriamente essa possibilidade, embora não tenham surgido evidências para apoiá-la.

Mas o discurso público sobre a origem da pandemia tem sido cada vez mais moldado por agendas políticas e narrativas conspiratórias. Parte disso difama especialistas que estudaram essa questão com base em dados.

Uma teoria da conspiração comum afirma que altos funcionários pressionaram os cientistas a promover a hipótese de uma origem natural, enquanto silenciavam a possibilidade de uma “fuga” do laboratório. Algumas teorias da conspiração chegam a sugerir que os cientistas que promoviam essa hipótese “preferida” eram recompensados com financiamento em troca.

“Essas narrativas são falsas”, garantem os investigadores. “Ignoram, descartam ou deturpam o extenso conjunto de evidências sobre a origem da pandemia. Em vez disso, baseiam-se em citações seletivas de discussões privadas e numa representação distorcida do processo científico e das motivações dos cientistas”, acrescentam.

O que dizem as evidências?

5 anos depois do suprarreferido artigo na Nature Medicine, surgiu um conjunto substancial de novas evidências que aprofundou a nossa compreensão de como o SARS-CoV-2 provavelmente surgiu através de um spillover natural.

No início de 2020, os argumentos a favor de uma origem zoonótica já eram convincentes. Características muito discutidas do vírus são encontradas em coronavírus relacionados e carregam sinais de evolução natural. O genoma do SARS-CoV-2 não mostrou sinais de manipulação laboratorial.

O comércio de animais selvagens e a indústria de criação de animais para peles, que movimentam milhares de milhões de dólares na China, transportam regularmente animais de alto risco, frequentemente infetados com vírus, para centros urbanos densamente povoados.

Acredita-se que o SARS-CoV-1, o vírus responsável pelo surto de SARS, tenha surgido dessa forma em 2002, na província chinesa de Guangdong.

Da mesma forma, análises detalhadas de dados epidemiológicos mostram que os primeiros casos conhecidos de COVID se concentraram em torno do mercado de animais vivos de Huanan, em Wuhan, na província de Hubei, em dezembro de 2019.

Várias fontes de dados independentes, incluindo hospitalizações precoces, mortes excessivas por pneumonia, estudos de anticorpos e infeções entre profissionais de saúde, indicam que a COVID se espalhou pela primeira vez no distrito onde o mercado está localizado.

Um novo estudo, em 2022, mostrou que as amostras ambientais positivas para SARS-CoV-2 se concentravam na secção do mercado onde eram vendidos animais selvagens.

Em 2024, ficou demonstrado que essas mesmas amostras continham material genético de animais suscetíveis – incluindo cães-guaxinins e civetas – em gaiolas, carrinhos e outras superfícies usadas para os manter e transportar.

Isso não prova que os animais infetados foram a fonte. Mas denuncia que o mercado fosse o local onde o vírus se espalhou pela primeira vez. E é contrário ao que seria esperado de uma “fuga” de laboratório.

A conclusão baseada em evidências de que a pandemia da COVID provavelmente começou com um vírus que saltou dos animais para os seres humanos destaca o risco muito real que enfrentamos cada vez mais. É assim que as pandemias começam, e isso acontecerá novamente. No entanto, estamos a destruir a nossa capacidade de as impedir ou de nos prepararmos para elas.

Prevenção da próxima pandemia em causa

Como escreve o The Conversation, as especulações e teorias da conspiração em torno da origem da COVID minaram a confiança na ciência.

O falso equilíbrio entre as teorias da “fuga” do laboratório e da origem zoonótica  adicionou combustível ao fogo da conspiração.

Esta agenda anticientífica, resultante em parte das teorias da conspiração sobre a origem da COVID, está a ser usada para ajudar a justificar cortes profundos no financiamento da investigação biomédica, da saúde pública e da ajuda global.

Porém, estas áreas são essenciais para a preparação para pandemias.

Nos EUA, por exemplo, isso significou cortes significativos nos Centros de Controlo de Doenças e nos Institutos Nacionais de Saúde, o encerramento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e a retirada da OMS.

Com a confiança na ciência e nas instituições de saúde pública minada fica dificultado o desenvolvimento e a adoção de vacinas que salvam vidas e outras intervenções médicas. Isso nos deixa mais vulneráveis a futuras pandemias.

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