De guerrilheiros de chinelos a “engenheiros” militares. Por que é que os EUA atacam os Huthis?

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Abriu-se uma nova frente de guerra no Mar Vermelho na ofensiva entre Israel e o Hamas em Gaza, com a milícia Huthi e os EUA ao barulho. Mas o que justifica os ataques norte-americanos aos rebeldes do Iémen?

A retórica anti-EUA e o facto de serem aliados do Irão, do Hamas e do Hezbollah seriam argumentos suficientes para os recentes ataques norte-americanos, com o apoio do Reino Unido, aos rebeldes Huthis no Iémen.

Mas os perigos que o grupo armado representa vão para além disso.

Inicialmente vistos como um grupo de guerrilheiros tribais, e alvo do desdenho internacional, os Huthis assumiram um importante – e perigoso – papel na guerra entre Israel e o Hamas.

Actualmente, o mundo está mais desperto para os riscos que implicam, nomeadamente devido aos ataques que têm feito a navios comerciais no Golfo de Adán, no Mar Vermelho.

Está em causa uma ameaça ao comércio internacional, mas também há riscos para a estabilidade e a segurança de uma região particularmente complicada.

Quem são os Huthis?

Os Huthis tornaram-se notícia a nível mundial durante os protestos da chamada “Primavera Árabe” em 2014.

Nessa altura, no âmbito de rivalidades tribais que se repercutiram na vida política do Iémen, o grupo rebelde tomou a capital do Iémen, Saná, instaurando um “governo revolucionário” e forçando a demissão do presidente Abdelrabbo Mansur Hadi em Janeiro de 2015.

Esses actos levaram a uma intervenção militar no Iémen liderada pela Arábia Saudita – os Huthis também são anti-wahabistas (a doutrina que reina na Arábia Saudita).

Esse conflito levou a bombardeamentos sangrentos e à pior catástrofe humanitária do planeta, com milhares de pessoas mortas nos ataques militares e milhares a morrerem de fome e por falta de cuidados médicos.

Os ataques sauditas conseguiram levar à restauração da presidência de Mansur Hadi, mas os Huthis mantiveram o poder no norte do Iémen, onde lideram um “proto-estado repressivo”.

Entretanto, num clima de guerra civil, Mansur Hadi demitiu-se, o que levou o Iémen a ser governado por um Conselho Presidencial de sete membros liderado por Rashad al Alimi, figura pró-saudita.

A guerra continua, assim, latente no interior do Iémen e esses conflitos internos, com diferenças tribais e ideológicas à mistura, fomentaram o crescimento da milícia.

O ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023 e a consequente ofensiva israelita em Gaza, reactivou os ataques dos Huthis e veio aumentar os seguidores da milícia, movidos pelo “ódio” aos israelitas.

Entre 2004 e 2010, o movimento passou de apenas 2 mil elementos para os 100 mil, segundo estimativas de organizações internacionais. Actualmente, já terá mais de 120 mil.

O papel do Irão

Os Huthis e o Irão têm uma ideologia e interesses coincidentes, nomeadamente quanto ao posicionamente anti-EUA e anti-Israel.

“Deus é Grande. Morte à América. Morte a Israel. Abaixo os Judeus. Vitória do Islão”, é o slogan do grupo rebelde que vai ao encontro dos lemas históricos da república islâmica do Irão.

A entrada em jogo da Arábia Saudita contra os Huthis no conflito do Iémen aproximou ainda mais as duas partes. Os sauditas, que são aliados dos EUA, são velhos inimigos dos iranianos.

Os EUA deram apoio logístico à Arábia Saudita na guerra no Iémen, mas, numa espécie de guerra secreta, as forças especiais norte-americanas terão também ajudado nos combates.

Assim, as rivalidades distanciam uns e aproximam outros. Os Huthis têm os iranianos como aliados e, diz-se, como principais financiadores.

O grupo rebelde faz parte do chamado “Eixo de Resistência” com os grupos pró-Irão da região, a par do Hezbollah no Líbano, do Hamas em Gaza e das milícias xiitas no Iraque.

De guerrilheiros de chinelos a “engenheiros” militares

Os Huthis começaram por ser um grupo de guerreiros tribais, com armamento primitivo. Mas, actualmente, são uma milícia sofisticada com um vasto arsenal militar que inclui drones de largo alcance (até 2.000 quilómetros) que podem atingir a Arábia Saudita.

De resto, nos últimos anos, têm realizado vários ataques à Arábia Saudita, incluindo ao aeroporto de Riad, a instalações da petrolífera Aramco e ao circuito de Fórmula 1 no país.

Entre 2015 e 2022, os Huthis lançaram 430 mísseis balísticos e 851 drones suicidas contra a Arábia Saudita, segundo dados dos sistemas de segurança sauditas.

O grupo rebelde também chegou a lançar drones contra Israel, mas foram interceptados por navios dos EUA.

Além disso, têm minas marítimas e possuem mísseis de cruzeiro e mísseis balísticos com alcances até 1.000 quilómetros e têm atacado navios no Mar Arábico com barcos “kamikaze”.

Têm sido abastecidos de armamento através de redes de contrabando provenientes do Irão, mas também já produzem as suas próprias armas no Iémen – os guerrilheiros de chinelos tornaram-se “engenheiros” militares após receberem treino no Irão e no Líbano.

Por que são uma ameaça à segurança mundial?

Este vasto arsenal militar explica, desde já, por que constituem uma ameaça para o mundo. Até porque têm realizado ataques sofisticados a barcos, como o que ocorreu a 19 de Novembro de 2023, a um navio detido por um israelita que continua sequestrado.

Os diversos ataques a navios comerciais que têm realizado já levaram muitas companhias a desviarem-se da rota habitual, fazendo percursos mais longos para evitar a passagem pelo Golfo de Aden que é usada, habitualmente, para fazer a rota entre a Ásia e a Europa.

Mapa que mostra o Golfo de Aden na costa do Iémen

A insegurança na região fez disparar os preços no comércio internacional e isso vai acabar por afectar o bolso de pessoas por todo o mundo.

Está também em causa o preço do petróleo, uma vez que os ataques dos Huthis à Arábia Saudita podem influenciar a produção. Em 2019, esses ataques paralisaram metade da produção saudita, levando a um aumento do preço do petróleo de mais de 10%.

O que justifica os ataques Huthis?

Em primeiro lugar, os Huthis realizam estes ataques porque… podem. Mas é, sobretudo, uma forma de se afirmarem como uma força de resistência e como uma “voz” importante no meio do conflito entre Israel e o Hamas.

Os líderes dos Huthis têm dito que só páram com os ataques quando os israelitas deixarem entrar ajuda humanitária em Gaza. Mas as intenções vão para além disso, e também se trata de um ataque à economia de Israel e aos seus aliados.

As acções Huthis também são uma forma de ganharem popularidade entre os defensores da causa palestina, o que pode aumentar as fileiras das milícias. Mas também lhes permitem ganhar notoriedade – e respeito – perante os inimigos da região.

Neste contexto, não fazer nada seria um problema pelas consequências que podiam advir. Mas os ataques norte-americanos podem complicar ainda mais os conflitos latentes na região do Golfo Pérsico. E não vão apagar a fúria dos Huthis – muito pelo contrário.

“Não nos vamos ajoelhar perante os americanos”, já avisou o líder Huthi, Abdel Malek al Huzi, prometendo represálias contra os EUA e os seus aliados.

Susana Valente, ZAP //

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