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Julgamento do “tsunami de fogo”. Ascendi só realizava gestão de combustível quando notificada pelas autarquias

António Cotrim / Lusa

O julgamento para apurar eventuais responsabilidades criminais dos incêndios de Pedrógão Grande arrancou, esta segunda-feira, no Tribunal de Leiria.

José Revés, administrador executivo da Ascendi, empresa que tinha a subconcessão da Estrada Nacional 236-1, disse que a empresa só tratava da faixa de gestão de combustível quando notificada pelas autarquias.

Não havia planos municipais de defesa da floresta contra incêndios, pelo que não fomos notificados para a realização da gestão das faixas de combustível. Era esse o entendimento da empresa”, afirmou, esta segunda-feira em tribunal, o engenheiro que tinha a responsabilidade da área da operação e manutenção.

José Revés, um dos quatro arguidos que disse ao coletivo de juízes que queria prestar declarações, explicou que “sem plano, a avaliação que era feita era casuística”.

“A preocupação era garantir a segurança rodoviária dos utentes”, adiantou, garantindo que “sempre que as câmaras municipais” comunicavam à Ascendi “a existência de planos com indicação da gestão de combustível, a Ascendi sempre o fez”. “Cumpríamos os planos de acordo com as notificações.”

O arguido afirmou ainda que a limpeza das faixas de gestão de combustível foi cumprida como estava previsto no plano da empresa e “no manual de proteção florestal”.

Segundo explicou, quando a empresa assumiu a subconcessão das estradas do Pinhal Interior, a “manutenção florestal” era feita a três metros, mas a Ascendi “passou a fazê-lo a cinco metros, depois do visto do Tribunal de Contas”, e não os dez metros exigidos por lei.

José Revés disse que, “no início do ano era elaborado um plano com o prestador de serviço” que fazia a manutenção das vias. “Haveria, pelo menos, duas intervenções. Se houvesse necessidade de mais, devido a ser um ano chuvoso, em que a vegetação crescia muito, o prestador de serviço fá-lo-ia”, referiu.

Desconhecendo o plano em concreto, uma vez que “eram os técnicos no terreno que tratavam disso”, o engenheiro afirmou que a “ação de fiscalização era feita através da estrutura residente” da Ascendi.

Confrontado pela procuradora do Ministério Público sobre a razão de não ter questionado sobre a inexistência desses planos de defesa da floresta, o arguido referiu que o “entendimento da empresa” era seguir o seu manual. “No terreno sei que havia contactos entre a nossa equipa e a câmara municipal e nunca nos foi dito que havia necessidade da gestão de combustível”.

José Revés afirmou ainda que a estrutura da Ascendi percorria os vários quilómetros de estrada que tem sob a sua responsabilidade. “Quando havia reclamações em relação à manutenção florestal procurávamos resolver o problema o mais rápido possível.”

Segundo o arguido, que está acusado de 34 crimes de homicídio e sete crimes de ofensa à integridade física, cinco deles graves, por negligência, a Ascendi fez “gestão de combustível nesse lote [zona da Estrada Municipal 236-1] dez dias antes“.

“Soube, já depois do incêndio, que tinha sido efetuada a primeira faixa de combustível.”

De acordo com o Público, no arranque do julgamento do incêndio de Pedrógão, que conta com 11 arguidos, apenas os três funcionários da Ascendi e o presidente da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu, anunciaram à juíza a intenção de prestar declarações nesta fase.

No banco dos réus estão também dois funcionários da EDP, o presidente da autarquia de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, o ex-vice, José Graça, e o ex-presidente da autarquia de Castanheira de Pêra, Fernando Lopes. A antiga responsável pelo gabinete técnico florestal da câmara de Pedrógão, Margarida Gonçalves, e o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão, Augusto Arnaut, também estão a ser julgados.

Julgamento “pervertido” pela “intervenção abusiva” do PR e do PM

O advogado do presidente da Câmara de Pedrógão Grande disse que o julgamento para determinar responsabilidades nos incêndios de 2017 “foi pervertido desde o primeiro momento pela intervenção abusiva do Presidente da República e do primeiro-ministro“.

“Este julgamento foi pervertido desde o primeiro momento pela intervenção abusiva do Presidente da República e do primeiro-ministro, quando nos primeiros dias fazem a afirmação bombástica que lesou a presunção de inocência: ‘todos os responsáveis serão severamente punidos'”, afirmou Manuel Magalhães e Silva, defensor de Valdemar Alves, nas exposições introdutórias.

Magalhães e Silva salientou que, na altura, não se colocou “a hipótese de haver uma força maior”. “Mas o que tivemos anos a fio foi o circo de procura de responsáveis sempre à revelia dos continuados pareces técnicos”, recordou.

Segundo o advogado, “esteve-se perante um ‘tsunami’ e não passa pela cabeça de ninguém que seja possível combater um ‘tsunami'”. “Não se combate, sofre-se”, salientou Magalhães e Silva, realçando a “impotência perante tal fenómeno”.

Referindo ainda que “o que aconteceu na pronúncia foi um carimbo da acusação”, o advogado referiu que “é complicado perante o ambiente social que se criou, mas os autos estão arquivados“.

Magalhães e Silva defendeu ainda que o julgamento não se deveria realizar, tendo em conta o recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação. “Deveria haver entendimento que o recurso deveria subir de imediato e não se esperar pelo final do julgamento, correndo o risco de ter de se repetir”.

A presidente do tribunal coletivo que está a julgar o processo sobre as responsabilidades criminais nos incêndios de Pedrógão Grande admitiu o recurso do Ministério Público (MP), mas este sobe ao Tribunal da Relação de Coimbra após o julgamento.

“Por a decisão ser recorrível, o recurso ser tempestivo e a recorrente ter legitimidade, admito o recurso interposto” pela magistrada do Ministério Público, lê-se no despacho da juíza-presidente, Maria Clara Santos, a que a Lusa teve acesso.

Incêndio perdurará para sempre

À saída da primeira sessão do julgamento, o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande afirmou que o incêndio de 17 de junho de 2017 “irá perdurar” para sempre, garantindo que deu o seu melhor.

Augusto Arnaut quis deixar uma declaração às famílias e amigos das vítimas do incêndio de Pedrógão Grande durante o julgamento, mas a juiz-presidente considerou que o seu “estado de alma” não era para ser proferido na audiência.

“Só queria dizer que aquele dia 17 de junho de 2017 irá perdurar para o resto da minha vida. Infelizmente, as vítimas já não se encontram connosco, mas queria dizer aos familiares e amigos que lamento muito o que o incêndio provocou”, disse aos jornalistas visivelmente emocionado, à saída do Tribunal Judicial de Leiria.

“Tenho 35 anos de bombeiro, nos quais 20 de comando. Dei o meu melhor. Todos os bombeiros que estiveram comigo nessa ocorrência deram o seu melhor. Sou bombeiro por opção e o meu lema foi sempre salvar vidas e bens”, acrescentou.

Filomena Girão, advogada de Augusto Arnaut, acrescentou que o comandante “entendeu que esta comunicação era devida às famílias das vítimas”.

“É uma declaração que todos subscrevemos, ainda que da parte do senhor comandante tenha este peso, de quem esteve lá, de quem teve a coragem de estar, e continua a ter a coragem de estar sempre que é chamado, a defender quem precisa, mesmo quando os meios não são os suficientes”, sublinhou.

A advogada esclareceu que esta é uma “declaração de estado de alma” e não uma assunção de culpa.

“O senhor comandante lamenta profundamente o que aconteceu ainda que esteja absolutamente certo de ter feito tudo o que podia, com os meios que tinha. Não era possível fazer melhor. O comandante Arnaut e todos os bombeiros que estiveram naquele dia [incêndio] fizeram milagres com os poucos meios que tinham”, frisou Filomena Girão.

Augusto Arnaut responde por 63 crimes de homicídio e 44 de ofensa à integridade física, 12 dos quais graves, todos por negligência.

O julgamento dos 11 arguidos para determinar responsabilidades criminais nos incêndios de Pedrógão Grande, em junho de 2017, nos quais o Ministério Público contabilizou 63 mortos e 44 feridos quiseram procedimento criminal, começou esta segunda-feira, no Tribunal Judicial de Leiria.

ZAP // Lusa

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