Marcelo Camargo / Agência Brasil

Um em cada três pessoas indígenas da América do Sul têm o gene MUC19, herdado dos Denisovanos
Um novo estudo descobriu que uma determinada variante genética herdada dos Denisovanos poderá ter dado aos humanos modernos uma vantagem na ocupação do continente americano.
Há milhares de anos, os primeiros humanos empreenderam uma jornada arriscada, atravessando centenas de quilómetros de gelo no Estreito de Bering até ao mundo desconhecido das Américas.
Agora, um novo estudo conduzido pela University of Colorado Boulder sugere que esses nómadas levavam consigo algo surpreendente — um fragmento de ADN herdado de uma espécie de hominídeo já extinta, que poderá ter ajudado os humanos a adaptar-se aos desafios do seu novo lar.
Os resultados do estudo foram apresentados num artigo publicado na quarta-feira na revista Science.
“Do ponto de vista da evolução, isto é um salto incrível”, afirmou o antropólogo Fernando Villanea, investigador da UC Boulder e primeiro autor do estudo, em comunicado da universidade. “Mostra um nível de adaptação e resiliência dentro de uma população que é simplesmente notável”.
O estudo centrou-se numa espécie conhecida como Denisovanos. Estes antigos parentes do ser humano viveram desde o território da atual Rússia até à Oceânia, estendendo-se também para oeste até ao Planalto Tibetano. Recentemente, um estudo descobriu que chegaram a Taiwan.
Os Denisovanos terão desaparecido há dezenas de milhares de anos. A sua existência, contudo, continua a ser pouco compreendida: os cientistas identificaram o primeiro Denisovano apenas há 15 anos, a partir do ADN de um fragmento de osso encontrado na gruta de Denisova, na Rússia.
O grupo extinto de humanos não tem ainda um nome científico oficial, em parte por razões que se prendem com a arqueologia, e em parte por uma questão legal.
Tal como os Neandertais, os Denisovanos poderão ter tido sobrancelhas salientes e ausência de queixo. “Sabemos mais sobre os seus genomas e sobre como funciona a sua bioquímica do que sobre a sua aparência física”, explicou Villanea.
Cada vez mais investigações têm demonstrado que os Denisovanos se cruzaram tanto com Neandertais como com humanos, moldando profundamente a biologia das populações atuais.
Para explorar essas ligações, Villanea e os seus colegas — incluindo o coautor David Peede, da Brown University — analisaram os genomas de pessoas de várias partes do mundo. Em particular, a equipa centrou-se num gene chamado MUC19, que desempenha um papel importante no sistema imunitário.
O grupo descobriu que pessoas com ascendência indígena americana têm maior probabilidade do que outras populações de transportar uma variante deste gene proveniente dos Denisovanos.
Esta herança genética ancestral poderá ter ajudado os humanos a sobreviver nos ecossistemas completamente novos da América do Norte e do Sul, dizem os autores do estudo.
Um gene pouco conhecido
Segundo Fernando Villanea, a função do gene MUC19 no organismo humano é quase tão misteriosa quanto os próprios Denisovanos. Faz parte de um conjunto de 22 genes nos mamíferos que produzem mucinas. Estas proteínas formam muco que, entre outras funções, protege os tecidos contra agentes patogénicos.
“Parece que o MUC19 tem consequências funcionais relevantes para a saúde, mas estamos apenas a começar a compreender estes genes”, disse.
Estudos anteriores já tinham mostrado que os Denisovanos possuíam a sua própria variante do gene MUC19, com uma sequência única de mutações, que transmitiram a alguns humanos.
Esse tipo de mistura genética era comum no mundo antigo: a maioria das pessoas vivas hoje possui algum ADN neandertal, enquanto o ADN denisovano representa até 5% do genoma de algumas populações da Oceânia.
No estudo agora publicado, Villanea e os colegas quiseram perceber melhor de que forma estas “cápsulas do tempo genéticas” moldaram a nossa evolução.
A equipa analisou dados já publicados sobre os genomas de humanos modernos no México, Peru, Porto Rico e Colômbia — regiões com forte presença de ascendência indígena americana.
Descobriram que um em cada três indivíduos de ascendência mexicana possui uma cópia da variante denisovana do MUC19 — sobretudo em segmentos do genoma associados à herança indígena americana. Em contraste, apenas 1% das pessoas com ascendência da Europa Central apresenta essa variante.
Os investigadores encontraram algo ainda mais surpreendente: nos humanos, a variante denisovana do gene parece estar rodeada por ADN neandertal. “Este ADN é como uma bolacha Oreo, com um recheio denisovano no centro e duas camadas neandertais”, disse Villanea.
Um novo mundo
Eis o os autores do estudo suspeitam que aconteceu: antes de os humanos atravessarem o Estreito de Bering, os Denisovanos cruzaram-se com Neandertais, transmitindo-lhes o MUC19. Depois, os Neandertais cruzaram-se com humanos, partilhando parte desse ADN denisovano.
É a primeira vez que os cientistas identificam ADN a passar dos Denisovanos para os Neandertais e só depois para os humanos.
Mais tarde, quando os humanos migraram para as Américas, a seleção natural favoreceu a disseminação deste MUC19 herdado.
Ainda não se sabe ao certo porque razão a variante denisovana se tornou tão comum nas Américas e não noutras partes do mundo.
Villanea salienta que os primeiros habitantes do continente americano provavelmente enfrentaram condições únicas na história da humanidade, incluindo novos tipos de alimentos e doenças. O ADN denisovano poderá ter-lhes dado ferramentas adicionais para lidar com esses desafios.
“De repente, as pessoas tiveram de descobrir novas formas de caçar, de cultivar, e desenvolveram tecnologias impressionantes em resposta a esses desafios”, disse. “Mas, ao longo de 20 mil anos, os seus corpos também se foram adaptando a nível biológico.”
“O que as populações indígenas americanas fizeram foi verdadeiramente extraordinário”, concluiu. “Partiram de um antepassado comum na região do Estreito de Bering e conseguiram adaptar-se, biologicamente e culturalmente, a um novo continente que contém todos os tipos de biomas existentes no mundo.”