Subprodutos da guerra na Ucrânia, explosivos terrestres deixados pelas tropas russas em solo ucraniano prejudicam o “celeiro do mundo” e agravam a escassez de cereais e óleos comestíveis no mercado internacional.
O facto de a Ucrânia se ter tornado no país mais contaminado por minas terrestres desde a Segunda Guerra Mundial lança uma sombra sobre a segurança alimentar global. A conclusão é de um estudo realizado pelo Tony Blair Institute for Global Change, de Londres, a par do Ministério ucraniano da Economia.
Numa entrevista recente à Donbas Realii – estação regional de notícias do Serviço Ucraniano da Rádio Europa Livre (RFE) –, um agricultor do país contou como teve de “arrancar as minas com as próprias mãos”, e que “arriscou a vida” para eliminar os engenhos deixados pelos russos que ocuparam a área.
Mesmo após a retirada das tropas da Rússia de partes da Ucrânia, os agricultores continuam a enfrentar dificuldades: são forçados a semear os seus cereais e sementes oleaginosas em campos infestados de minas.
Nos dias 17 e 18 de outubro, a Suíça e a Ucrânia realizaram em conjunto a Ukraine Mine Action Conference (UMAC2024) com o objetivo de ajudar o país a desminar cerca de 5 milhões de hectares — 10% da sua terra arável.
Além disso, em 139,3 mil quilómetros quadrados (quase 25% de todo o território do país), é necessário verificar o grau de contaminação com minas, artilharia não deflagrada e outros explosivos.
Antes da invasão russa, a 24 de fevereiro de 2022, a agricultura era um pilar da economia ucraniana, responsável por quase 11% do PIB. No final de 2023, este número caiu para 7,4%.
Segundo dados do relatório do Instituto Tony Blair, as minas terrestres estão a comprometer anualmente o equivalente a 5,6% do PIB da Ucrânia, ou 11,2 mil milhões de dólares. A maior parte da queda foi causada pela redução das exportações agrícolas, uma das principais razões para o crescente défice económico ucraniano.
“Celeiro do mundo” sob ameaça ambiental
A presença das minas torna improvável que as exportações de alimentos da Ucrânia regressem aos níveis pré-guerra num futuro próximo, mesmo em regiões onde as tropas russas foram forçadas a retirar-se.
A organização canadiana Mriya Aid está a ajudar na remoção das minas. Embora não trabalhe diretamente com os agricultores, apoia o treino dos sapadores (soldados responsáveis pela remoção de minas terrestres), com financiamento e equipamento para remover os engenhos em várias partes do país.
Segundo a presidente da organização, Lesya Granger, a desminagem da Ucrânia é também crucial para prevenir futuros danos ambientais, tais como “vazamento de substâncias tóxicas para o solo e a água, ou libertação de partículas prejudiciais para a atmosfera, devido a explosões”.
As vastas extensões de solo negro fértil da Ucrânia valeram-lhe o apelido de “celeiro do mundo”. Libertar a terra de minas e outras contaminações é, portanto, vital para restaurar o seu papel como líder nas exportações de cereais.
Países da Ásia e África, por exemplo, compraram mais de 90% do trigo ucraniano exportado entre 2016 e 2021. No entanto, após a invasão de 2022, mais de um quarto do seu solo foi inutilizado pela guerra – uma área equivalente à da Bélgica.
África é a região mais afetada
Apesar de tudo, a Ucrânia continua a ser um importante produtor global de alimentos. No ano fiscal de 2023-24 – o período de 12 meses em que a colheita é cultivada, colhida e vendida –, o país exportou 57,5 milhões de toneladas métricas de cereais e sementes oleaginosas, tendo como maiores importadores a Espanha, o Egito e a Indonésia, segundo a associação nacional de cereais.
A situação é especialmente delicada em África, onde nações como o Egito e a República Democrática do Congo dependem da Ucrânia e da Rússia para mais de 75% das suas importações de cereais. Logo após o início da invasão russa, entre fevereiro e março de 2022, o Índice de Preços Alimentares da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) registou um aumento de 12,6% – o maior desde que foi criado, na década de 1990.
Em 2023, a Ucrânia fez progressos significativos na reativação das suas exportações, graças ao acordo com a Rússia que estabeleceu a Iniciativa de Cereais do Mar Negro, permitindo remessas a partir do porto de águas profundas de Odessa. Quando, em agosto, esse acordo chegou ao fim, por decisão de Moscovo, a Ucrânia formou um novo corredor de exportações.
No entanto, o enfraquecimento das exportações ucranianas continua a ser uma ameaça para as nações africanas, segundo um relatório do Banco Africano de Desenvolvimento. Os preços médios ao consumidor aumentaram 17% no continente em 2023. Enquanto a África Oriental registou um pico de inflação de 26,5%, países como o Sudão atingiram extremos superiores a 200%.
Walter Leal, diretor do Centro de Investigação e Transferência da Universidade de Ciências Aplicadas de Hamburgo, explica que a Argélia e a Líbia, entre outros, conseguiram conter o impacto da subida de preços com a faturação das suas exportações de petróleo e gás. No entanto, para o Iémen, Líbano ou Sudão, “a ajuda alimentar internacional continua a ser crítica”.
É impossível prever quando a situação se normalizará
O economista ucraniano Oleg Pendzin recorda que as minas terrestres são apenas um dos muitos problemas que atingem a agricultura no momento: “Pode-se remover as minas e obter financiamento internacional, mas os drones podem ainda atacar e colocar os trabalhadores em perigo.”
O especialista considera também fundamental restaurar o abastecimento de água e reconstruir a barragem de Kakhovka, que fornecia água para a Crimeia, a central nuclear de Zaporíjia e toda a região, e que foi destruída em junho de 2023. Além disso, a guerra causou uma escassez de mão de obra agrícola.
“Se as pessoas fugiram ou foram recrutadas, a terra permanece ociosa. Desminada ou não, não há ninguém para cuidar dela. As aldeias no leste da Ucrânia estão desertas, restam apenas os moradores mais velhos.”
De momento, não há como prever quando a Ucrânia estará livre das minas terrestres e dos explosivos deixados pela guerra. Até mesmo as autoridades nacionais diferem nas suas estimativas: enquanto o ministro do Interior, Ihor Klymenko, afirma que a desminagem pode demorar 10 anos, o ex-ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, fala em 30 anos.
Por isso, a guerra na Ucrânia continuará a “piorar a segurança alimentar”, prevê Walter Leal. “Especialmente em países com populações vulneráveis, os custos crescentes dos cereais, óleos vegetais e fertilizantes resultarão em preços mais altos dos alimentos, inflação crescente e potencial de instabilidade política.”
// DW