Queixas em uníssono sobre falta de meios, morosidade e corrupção marcam arranque do Ano Judicial

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Manuel de Almeia / Lusa

A ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, discursa durante a cerimónia de abertura do Ano Judicial

Na estreia da Ministra da Justiça em discursos públicos, os temas dos intervenientes estiveram longe de ser estreantes. A morosidade, o combate à corrupção, a transição digital e a falta de meios foram os problemas apontados.

A menos de três meses de encerrar, o ano judicial foi hoje oficialmente aberto, numa cerimónia que no rol de discursos que contou com as estreias da recém-empossada ministra da Justiça e do juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Mas os temas referidos nos vários discursos estão longe de serem estreantes.

A abertura esteve marcada para 9 de Março, mas foi adiada. Esta data inicial pressupunha que o novo Governo já estivesse em funções, mas a tomada de posse foi adiada devido à repetição da votação no círculo eleitoral da Europa.

Depois da banda da Força Aérea ter tocado o hino nacional, as declarações arrancaram com a intervenção de Luís Menezes Leitão. O bastonário da Ordem dos Advogados atirou-se ao Ministério Público, exigindo que este explique as razões das recentes acusações a políticos que acabaram por ser absolvidos e que “tiveram de viver durante anos com o estigma de uma acusação criminal”.

“Esperar-se-ia, a bem da credibilidade da nossa justiça que, sendo as mesmas julgadas improcedentes nos Tribunais, os cidadãos tivessem uma explicação pública por parte do Ministério Público sobre o que motivou a sua acusação”, disse, criticando a mediatização da detenção de cidadãos para interrogatório por juiz de instrução.

O bastonário também não poupou nas críticas ao estado da justiça portuguesa, falando na sua morosidade e falta de credibilidade e apontando uma “absoluta falta de recursos humanos” e uma “desastrada reforma do Código de Processo Penal” em novembro de 2021, considerando que o Parlamento agiu precipitadamente.

“A nossa justiça cível só não é igualmente tão morosa em virtude do elevado valor das custas judiciais, que levam a que só lhe tenham acesso os muito ricos ou os muito pobres, estes últimos por beneficiarem do apoio judiciário. Há anos que se salienta ser imperioso a redução das custas judiciais, sendo inaceitável que a água que deveria saciar a sede de justiça dos cidadãos seja em Portugal paga pelos mesmos ao preço do champanhe francês”, condenou.

Falta de meios condiciona o MP

Seguiu-se a intervenção de Lucília Gago, Procuradora-Geral da República, que lembrou que o trabalho do Ministério Público está a ser condicionado por um “expressivo e persistente défice de recursos materiais e humanos” e que este problema justifica a “afirmação de ser a autonomia do MP insatisfatória, e até ilusória, ao não contemplar a vertente financeira”.

Para a PGR, “nesse contexto adverso pontua também a generalizada insuficiência da afectação de oficiais de justiça e de recursos materiais e humanos para dar cabal resposta às cada vez mais imprescindíveis perícias financeiras, contabilísticas e informáticas, com reflexos negativos e até de verdadeira asfixia de domínios”.

As prioridades devem passar pela recuperação de activos para o MP, assim como um foco nos direitos dos jovens e crianças, na violência doméstica, no combate ao cibercrime e na defesa do ambiente.

Relativamente ao cibercrime, a PGR aponta um crescimento “galopante” de queixas ao MP, que “mais que duplicaram de 2019 para 2020 e de 2020 para 2021”, prevendo-se um novo enorme aumento em 2022.

Lucília Gago lembrou ainda que os objetivos estratégicos de política criminal para o triénio 2022-2024 passam pelo combate à corrupção e crimes conexos, tendo presente o risco associado ao aumento dos fundos públicos disponibilizados para o combate à crise económica bem como os riscos de abuso de regimes específicos de flexibilização nos procedimentos de contratação pública ou de fiscalização financeira.

São ainda precisos mais equipamentos informáticos “num tempo em que o teletrabalho gera maior nível de utilização dos sistemas informáticos e novas exigências a nível da fluidez e segurança das comunicações eletrónicas”, com Lucília Gago a reforçar a necessidade de se fazer a transição digital na área da justiça.

“É tempo de estancar a violação do segredo de justiça”

O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) falou a seguir. Henrique Araújo considera que a actual composição do Parlamento é uma “oportunidade única” para reformar o sector e fazer alterações mais estruturais, nomeadamente através de uma revisão constitucional.

“A actual distribuição de forças políticas no parlamento constitui uma oportunidade única para reformar o sistema de Justiça. Seria penalizador para a sociedade que, num contexto tão favorável, a doce e sedutora inércia acabasse por vencer”, afirmou.

Henrique Araújo propôs ainda a “grande utilidade” da criação de um programa de avaliação das leis para aferir o seu impacto, já que a justiça não resiste “sem uma produção legislativa de qualidade“.

“Uma produção legislativa que não obedeça a impulsos espoletados por este ou por aquele caso judicial, pela actuação deste ou daquele tribunal ou por critérios de oportunidade política. As leis não se podem fazer com pressa”, referiu.

Uma das prioridades do novo ano judicial deve ser a “alteração da lei de acesso ao Centro de Estudos Judiciários” e “o reforço da sua capacidade formativa”. O Presidente do STJ pediu ainda uma reflexão sobre as portas giratórias entre quem salta de cargos na justiça para a política.

“Quando se escolhe a magistratura como profissão, essa escolha deve ter-se por definitiva. Se a vocação política despontar no percurso de magistrado, a opção por esse novo caminho não deverá permitir o regresso à judicatura”, disse.

Outro problema que deve ser mais fiscalizado é a constante violação do segredo de justiça com notícias que alimentam “impunemente” o “comentário sistematicamente genérico, de crítica fácil e infundada” e expõem a “vida privada das pessoas a braços com processos judiciais”.

Ministra quer justiça próxima dos cidadãos

Catarina Sarmento e Castro estreou-se na sua primeira intervenção pública como Ministra da Justiça considerando que o reforço da confiança dos cidadãos e das empresas no sector é um “desígnio a seguir”.

“Para tal, é decisivo que se reforce o investimento na melhoria dos indicadores da Justiça, agora com recurso a ferramentas eletrónicas renovadas, e se potencie o seu uso. É também decisivo que se reutilize a abundante informação gerada, sempre no respeito pelas regras de tratamento de dados”, aponta.

Os problemas já são conhecidos, sendo agora preciso “resolver as disfuncionalidades que a prática vai revelando”. A responsável política refere que, na busca pela maior eficiência, as medidas gestionárias podem ser aprofundadas de modo a melhorar os métodos de trabalho e a gestão dos recursos humanos, identificando onde é que estes fazem falta.

A Ministra focou-se ainda na importância da transição digital, “com a exclusividade da tramitação processual eletrónica em todas as jurisdições e instâncias judiciais, inclusive na fase de inquérito, para tornar efetiva a celeridade das decisões”. “Neste percurso de transição digital, é fundamental a concretização dos investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”, sublinhou.

Este processo vai ter um novo impulso com o desenvolvimento dos sistemas de tramitação processual, como o Magistratus (sistema de interface para Juízes dos Tribunais Comuns e dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e o MP Codex (para Magistrados do Ministério Público).

Catarina Sarmento e Castro apontou também como prioridades implementar um sistema de apoio judiciário efetivo e de qualidade, persistir no combate à corrupção, através da “Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024” e dar resposta aos desafios do sistema prisional.

“Uma justiça mais eficiente e mais célere, mais próxima, de maior qualidade e mais cognoscível, mais transparente e, por isso, refundadora da confiança”, prometeu Catarina Sarmento e Castro.

Santos Silva promete maior clareza nas leis

Augusto Santos Silva também se estreou na intervenção na abertura do ano judicial no novo cargo de Presidente da Assembleia da República. O socialista parece ter tirado nota das críticas de Henrique Araújo ao poder político e prometeu empenhar-se na criação de melhores leis.

O presidente da Assembleia da República argumentou que “leis e decisões judiciais claras representam um meio poderosíssimo para induzir a confiança nos contratos, agilizar procedimentos e diminuir burocracias, prevenir e combater a corrupção, facilitar o acesso à justiça e imprimir celeridade na sua administração”.

“Geram, além do mais, substanciais reduções dos custos de contexto na realização de investimentos e enormes poupanças na despesa das famílias, das empresas e do Estado. Temos mesmo de avançar, em conjunto, no esforço de tornar as leis mais rigorosas, mais simples e mais compreensíveis“, defendeu.

Augusto Santos Silva considerou que em Portugal e na Europa vários programas conduziram já a “melhorias concretas” na clareza e rigor da legislação, “mas muito resta ainda por fazer”. Como exemplo de progresso, apontou a “operação de limpeza” do ordenamento jurídico português “de inúmeros diplomas já caducos”.

Marcelo realça combate à corrupção

No fecho da cerimónia, o Presidente da República apelou a que o combate à corrupção entre numa “nova fase”.

“O Governo avançou com novo mecanismo de combate à corrupção, que se espera seja verdadeiramente independente e que conjugue a sua atuação com o Tribunal de Contas”, avisa, lembrando também a morosidade dos processos, cujas decisões têm de ser conhecidas num “tempo muitíssimo mais razoável em democracia”.

Se as “leis para apertar a malha aos que surgem com património incompatível com rendimentos de cargos políticos ou públicos, ou para travar favores, preferências” são ainda insuficientes, então “que se façam mais, mas comedidamente, com ponderação, para serem eficazes”, e que “se aplique essas leis, ainda que imperfeitas ou incompletas, testando o seu alcance e eficácia”, apelou o chefe de Estado, em referência às tentativas de criminalização do enriquecimento injustificado.

“Como responder a essa sensação de mal estar social de convicção de que a corrupção continuaria a estar imparável e de que quase tudo e quase todos sucumbiriam às suas tentações: políticos, funcionários, magistrados, grupos empresariais, entidades associativas, cidadãos?”, questionou, dando a resposta: “Em tempos como este cumpre manter cabeça fria e serena e agir consistentemente”.

É também urgente um reforço dos meios e dos recursos humanos. O Presidente terminou o discurso defendendo a democracia, considerando que mesmo a mais imperfeita “é sempre mais justa do que a mais sofisticada das ditaduras”.

Adriana Peixoto, ZAP //

1 Comment

  1. Com tantos deputados/políticos advogados não seria de esperar outra coisa…
    E depois ainda temos os advogados ex-politicos, como o mafioso Júdice (que defende o Salgado, o Rendeiro, etc) a fazer de comentadores nas TV’s…
    Tem que se limpar esse “lixo” para a Justiça começar a melhorar.

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