Na quarta-feira, dezenas de mísseis iranianos foram lançados contra as bases aéreas iraquianas de Ain Assad e Erbil, que albergam tropas norte-americanas, numa operação de vingança após a morte do general Qassem Soleimani. Não foram registados feridos. Mas este pode não ter sido o fim da retaliação iraniana.
Embora não se conheça o número exato de mísseis, lançados diretamente do Irão, o Pentágono avançou que seriam “mais de uma dúzia”. Por sua vez, a Guarda Revolucionária do Irão alegou ter disparado dezenas, noticiou o Popular Mechanics. De acordo com a CNN, quatro outros mísseis terão falhado – três destinados a Ain Assad e um a Irbil.
Como apontou o Popular Mechanics, o Irão tem uma longa história de lançamentos de mísseis balísticos. Durante a Guerra com o Iraque, que decorreu entre 1980 a 1988, os dois lados lançaram mísseis nas suas principais cidades, numa tentativa de desmoralizar o inimigo. Após a guerra, o Irão continuou as suas intenções nos mísseis balísticos, tendo recebido assistência tecnológica por parte da Coreia do Norte.
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Em 2017, lançou entre quatro e seis mísseis contra as forças do Estado Islâmico na cidade de Deir ez-Zor, na Síria. Um ataque semelhante ocorreu em 2018. Em setembro desse mesmo ano, o país lançou mísseis contra alvos curdos, no Iraque.
A Guarda Revolucionária do Irão alertou Washington para não retaliar ou “enfrentará uma resposta mais dolorosa e esmagadora”. Mas os Estados Unidos (EUA) podem não ter que o fazer. Imagens de satélite fornecidas pelo Planet Labs mostram que o Irão escolheu atacar edifícios e estruturas onde dificilmente estariam pessoas.
Sendo verdade, o ataque iraniano envia duas mensagens: primeiro, que o Irão não está interessado em escalar as tensões ao matar ou ferir deliberadamente as tropas norte-americanas. O país precisava retaliar, mas pode ter feito isso de uma maneira que não force os EUA a responder. Segundo, o direcionamento preciso deixa claro que o Irão poderia ter perseguido as forças norte-americanas, caso pretendesse.
Mas há quem não concorde com esta perspetiva. O presidente do Estado-Maior Conjunto – oficial de mais alto escalão das forças armadas dos EUA -, o general Mark Milley, disse quarta-feira que, na sua avaliação, os militares iranianos queriam “matar”, além de destruir bens e equipamentos, quando dispararam os mísseis, revelou o Business Insider.
“Acredito, com base no que vi e no que sei, que os ataques foram destinados a causar danos estruturais, destruir veículos, equipamentos e aeronaves e matar pessoal. Essa é a minha avaliação”, disse Milley, citado pela Reuters. Contudo, “a análise está nas mãos de analistas de inteligência”, acrescentou.
Questionado se teriam existido baixas caso as tropas não tivessem avisado os mísseis antecipadamente, o que lhes deu tempo para se esconderem em bunkers e outras instalações reforçadas, Milley assentiu: “Acho que é uma conclusão razoável”.
Será este o fim da retaliação?
Na quarta-feira, Trump indicou que, para já, os EUA vão intensificar sanções económicas contra o Irão, considerando que o país está a recuar no conflito. “Parecem estar a retirar. E isso é bom”, afirmou. Mas uma análise mais atenta da história do Irão sugere que é cedo para dizer se este é o fim da retaliação, apontou a Time.
“O Irão tomou e concluiu medidas proporcionais em legítima defesa, de acordo com o artigo 51 da Carta da ONU”, escreveu no Twitter o ministro das Relações Externas iraniano, Mohammad Javad Zarif, logo após a investida, acrescentando que o Irão não buscou “escalada [nas tensões] ou guerra, mas se defenderá de qualquer agressão”.
Contudo, também numa publicação no Twitter, o líder supremo do país, Ali Khamenei, parecia contradizer Javad Zarif, ao lançar dúvidas sobre se a retaliação estava realmente concluída. “[Os norte-americanos] foram golpeados ontem à noite, mas essas ações militares não são suficientes”, disse.
Em casos de ataques anteriores contra o Irão, houve alturas em que Teerão se recusou a responder. Noutras, retaliou com violência.
Corria o ano de 1953 quando a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA orquestrou um golpe de estado para depor o então primeiro-ministro do Irão, Mohammad Mossadeh. A primeira intervenção militar norte-americana contra a República Islâmica começou poucos meses após ter sido afastado o governante apoiado pelos EUA, em 1979.
Nessa ocasião, quando os revolucionários islâmicos invadiram a embaixada dos EUA, levaram 52 diplomatas e cidadãos norte-americanos como reféns. Em abril de 1980, o Governo do então Presidente Jimmy Carter lançou uma operação militar fracassada, numa tentativa frustrada de recuperar os reféns.
Em 1988, no final da guerra entra o Irão e o Iraque, os EUA lançaram a sua segunda intervenção militar na República Islâmica, como retaliação após uma mina iraniana danificar um navio americano. A Marinha dos EUA destruído duas plataformas de vigilância iranianas, afundado dois dos seus navios e danificado severamente outro.
Meses depois, o cruzador norte-americano Vincennes abateu um avião iraniano, matando todos os 290 passageiros a bordo, num incidente que os EUA classificaram como acidente.
Essas duas investidas norte-americanas não provocaram uma resposta militar na época, devido à falta de recursos parte do Irão. Em 1980, o regime não tinha força para enfrentar os EUA e, no final da guerra entre o Irão e o Iraque, em 1988, as suas forças estavam esgotadas demais para abrir uma nova frente, comentou Ali Vaez, diretor do Projeto Irão no International Crisis Group.
Apesar das sanções económicas impostas por Trump colocarem Teerão sob pressão, “o Irão da década de 1980 não é nada como o Irão em 2020. Este é muito mais confiante e muito mais forte em termos militares e em meios assimétricos não convencionais para se defender”, frisou o especialista.
Assassinatos e guerra assimétrica
Washington não lançou operações militares no Irão desde a década de 1980, mas houve momentos em que a força militar dos EUA direcionada aos aliados e adversários do Irão levou Teerão a reavaliar as suas atividades na região, continuou a Time.
Em 2003, poucas horas após um ataque norte-americano contra um grupo terrorista sunita que Teerão havia ajudado no Iraque, o Irão fechou a fronteira que fornecia armas ao grupo. Também retirou os esforços para desenvolver uma ogiva nuclear logo após as tropas dos EUA derrubarem o ex-Presidente do iraque, Saddam Hussain.
Analisar as relações do Irão com outro adversário, Israel, pode fornecer igualmente uma visão do modo de operar de Teerão, frisou a Time. Tradicionalmente, Israel mantém uma política de silêncio sobre as operações militares no exterior, tenha conduzido uma série de assassinatos dentro da República Islâmica.
Israel travou uma guerra contra o Hezbollah, no Líbano, e entrou em conflito na Síria com vários grupos aliados do Irão. Em 1992, o assassinato do secretário-geral do Hezbollah, Abbas al-Musawi, em Beirute, aconteceu um mês antes de um ataque suicida que matou 29 civis na Embaixada de Israel, em Buenos Aires, na Argentina. O ataque, concebido pelo Hezbollah, foi uma vingança pela morte do seu líder.
Tal como o Hezbollah, o Irão parece atacar alvos fáceis a milhares de quilómetros das suas fronteiras. Em 2012, Ali Khameini prometeu “punir os autores” de um golpe contra um químico nuclear iraniano, o quarto cientista nuclear iraniano que Israel acreditava ter assassinado num período de dois anos.
Esperavam-se retaliações em Israel ou em solo norte-americano, mas os ataques ocorreram em lugares tão distantes como a Geórgia, a Índia, a Tailândia, e a Bulgária. O Irão, no entanto, negou ter cometido qualquer um dos atentados.
Os parceiros globais do Irão – muitos cultivados por Soleimani – oferecem uma variedade de opções para retaliação à volta do mundo. No entanto, especialistas acreditam que o tipo de ataques terroristas vistos nas décadas de 1990 e 2000 tornaram-se menos frequentes.
Desde que o presidente Trump assumiu o cargo, em 2017, a liderança do Irão acredita que os seus adversários regionais estão a tentar levar Teerão a um confronto direto com os EUA, como forma de conter a sua influência na região, indicou ainda à Time Ali Vaez.
E a resposta cuidadosamente calibrada do Irão ao assassinato de Soleimani pode não significar o fim da retaliação. “Os iranianos podem escolher a hora de fazer isso de maneira a minimizar os riscos de reação”, acrescentou o especialista. “Se os EUA ficarem presos noutro confronto, noutra crise com a Coreia do Norte, por exemplo, pode ser o momento em que o Irão escolheria para atacar”, concluiu.
Soleimani e os EUA trabalharam juntos para derrotar ISIS
Antes de Soleimani ser morto, era um nome pouco familiar nos EUA. Após a sua morte, a Casa Branca começou imediatamente a enquadrar o assassinato da mesma maneira que enquadrou a morte do líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, alguns meses antes, ou a do líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011, noticiou o OZY.
Mas o facto de Soleimani ser desconhecido para os norte-americanos, atesta a sua habilidade como oficial de guerra clandestina e o relacionamento complicado que tinha com o EUA, notou o OZY. Alguns anos antes, o general foi uma figura indispensável na luta contra os Talibã e o Estado Islâmico.
A capacidade de Soleimani de ser inimigo e, ao mesmo tempo, ocasional aliado dos EUA fazia parte do seu estilo de guerra. De acordo com o professor de política Arshin Adib-Moghaddam, o general criou “um eixo regional institucionalizado e ideológico”, que poderia “traduzir-se em ação política e militar versátil sempre que necessário”.
Isso permitia-lhe combater simultaneamente as forças israelitas no Líbano, através do Hezbollah, enquanto conduzia operações contra os Talibã no Afeganistão.
A colaboração ocasional do Irão com os EUA começou logo após o 11 de setembro. Embora o Governo de Trump tenha repetidamente afirmado que o Irão era parcialmente responsável pelos ataques, Teerão aproveitou a ocasião para denunciar os Talibã e recalibrar as suas relações com Washington.
Segundo Marvin Weinbaum, diretor do programa Afeganistão e Paquistão no Middle East Institute, Soleimani foi fundamental nessa colaboração, encerrada rapidamente após a declaração do então Presidente dos EUA George W. Bush, em 2002, de que o Irão fazia parte do “Eixo do Mal”, ao lado do Iraque e da Coreia do Norte.
Quaisquer que fossem os sentimentos que restaram entre Washington e Irão, evaporaram-se inteiramente nos primeiros anos da guerra civil na Síria. Durante esse conflito, Soleimani apoiou o regime de Assad contra manifestantes pró-democracia, intervenção estrangeira e, posteriormente, fações islâmicas, como o Estado Islâmico, em 2014.
Enquanto a guerra civil na Síria representava um fosso nas relações americano-iranianas, com as milícias apoiadas pela EUA a combaterem as milícias apoiadas pelo Irão, a ascensão do Estado Islâmico levou a uma colaboração de conveniência. Essa ocorreu em paralelo com o estreitamento das relações entre os dois países para a assinatura do acordo nuclear de 2015. Os EUA deixaram o pacto em 2018, o Irão anunciou que vai fazer o mesmo.
Embora Trump tenha tentado ficar com a maior parte dos créditos pela destruição do Estado Islâmico, o professor Adib-Moghaddam salientou que foi o Irão, junto com o poder aéreo russo e as forças curdas, que “deram os golpes decisivos”. E Soleimani era a mente por trás disso.
“Independentemente da política e biografia do homem, o assassinato de Soleimani tornou o mundo muito um local mais perigoso para se viver. Essa insegurança é o vínculo real que une iranianos e norte-americanos e que deveria mobilizá-los como parte de um movimento global contra a guerra”, afirmou.
Ainda assim, muitas pessoas na Síria e no Iraque comemoraram a morte de Soleimani. “Ele representa para muitos sírios o braço terrorista do regime no Irão”, referiu Eyad Hamid, um jornalista sírio. “Os sírios fora das áreas controladas pelo regime de Assad estavam jubilosos com o seu assassinato, independentemente dos motivos do Governo de Trump. Para eles, Soleimani não está menos envolvido na sua miséria do que Assad”.
O seu assassinato parece ter unido os iranianos contra os EUA, semanas depois da escalada dos protestos contra o regime islâmico. Esse pode ser um lembrete de que, assim como o relacionamento de Soleimani com os EUA era complexo, também será o seu legado no Oriente Médio, frisou o OZY.