Até há poucos dias quase ninguém tinha ouvido falar da Surgisphere, uma pequena empresa norte-americana. Mas isso mudou depois de uma centena de especialistas terem contestado o estudo que associava a hidroxicloroquina ao aumento da mortalidade em pacientes de covid-19.
Os autores do artigo científico que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a suspender os ensaios clínicos com hidroxicloroquina alegam, agora, que não podem garantir a “veracidade” dos dados que utilizaram para concluir que a substância aumentava as probabilidades de morte em pacientes com covid-19. E culpam a empresa que lhes forneceu os dados por não permitir que os mesmos sejam verificados.
O estudo foi assinado por Mandeep Mehra, do Hospital Brigham de Mulheres de Boston (EUA), Frank Ruschitzka, do Hospital Universitário de Zurique (Suíça), Amit Patel, do Departamento de Bio-Engenharia da Universidade de Utah (EUA), e Sapan Desai, cirurgião e fundador da Surgisphere, empresa que contribuiu com os dados anónimos dos 96 mil pacientes analisados no estudo.
Mandeep Mehra, Frank Ruschitzka e Amit Patel alegam, agora, que a Surgisphere não transfere a base de dados para que sejam alvo de uma revisão independente e que, por isso, já não podem “garantir a veracidade das fontes de dados primárias”.
Sapan Desai, director executivo da Surgisphere, é identificado no estudo como aquele que “obteve e analisou os dados”, tem recusado falar da pesquisa.
Publicado na conceituada revista médica The Lancet, o estudo concluiu que o uso de hidroxicloroquina no tratamento de pacientes de covid-19 aumenta as probabilidades de morte.
Mas depois da publicação do estudo, surgiram “várias preocupações em relação à veracidade dos dados e análises” pela empresa de Desai, conforme um comunicado da The Lancet que salienta que “há muitas perguntas pendentes sobre a Surgisphere e os dados” que disponibilizou.
A The Lancet também apela a “revisões institucionais urgentes às colaborações de investigação da Surgisphere”.
Isto porque a empresa está envolvida noutro estudo sobre a covid-19 que foi alvo de retratação e que foi publicado no New England Journal of Medicine (NEJM), mais um prestigiado jornal médico. Este estudo foi também liderado por Mandeep Mehra.
De acordo com a agência de notícias Bloomberg, esta investigação publicada no NEJM alegava ter recolhido registos de 107 pacientes de cinco hospitais em França, incluindo, nomeadamente, informações sobre as respectivas cores de pele. A Lei francesa não permite recolher esse tipo de dados, como aponta a agência, realçando que não há registo de a Surgisphere ter solicitado acesso aos mesmos.
“Jornais estão desesperados para publicar”
A OMS já anunciou que retomou os ensaios clínicos com hidroxicloroquina e a cientista chefe da OMS, Soumya Swaminathan, refere ao Financial Times que a organização poderia ter actuado de outra forma no processo.
“Em retrospectiva, pode dizer-se que devíamos ter pedido a base de dados, devíamos ter examinado, mas isso não é o normal, especialmente quando é publicado no The Lancet”, constata Swaminathan.
Para o editor da The Lancet, Richard Horton, estamos perante o que define como um “exemplo chocante de má conduta na área da investigação no meio de uma emergência de saúde global”, conforme declarações ao The Guardian.
Entretanto, há quem saliente a pressa que está a ocorrer na realização de estudos em torno da covid-19, na tentativa de encontrar soluções e melhores respostas para o vírus.
“Há uma pressa omnipotente para perceber esta nova doença – toda a gente está a tentar ter dados depressa”, constata à Bloomberg o professor de Medicina Tropical na Universidade de Oxford em Banguecoque, Nicholas Day.
“Todos os jornais [científicos] estão desesperados para publicar porque há uma sede de saber sobre esta doença. Por isso, são cometidos erros, as coisas são apressadas“, aponta Day.
“Vieram do nada para conduzir o mais influente estudo da pandemia”
Fundada em 2008 por Desai, a Surgisphere começou por publicar artigos médicos, mas ganhou impulso como empresa de análise de dados à boleia da covid-19, conforme afiança a revista The Scientist.
A empresa incluía no seu site várias “ferramentas de apoio a decisões” no âmbito da covid-19 disponíveis de forma gratuita, mas essa informação parece já não constar da página.
Terá sido retirada depois de todo o “barulho” em torno da empresa no seguimento das suspeitas no âmbito dos dois estudos científicos referidos. Também a morada e os contactos da empresa deixaram de constar do site.
Uma ferramenta desenvolvida pela Surgisphere para ajudar na gestão da distribuição de equipamentos médicos limitados durante a pandemia está também a ser posta em causa.
Designada “Covid-19 Severity Scoring Tool”, foi desenvolvida com recurso a algoritmos de machine learning e a uma base de dados de milhares de pacientes, segundo a Surgisphere, e pretende ajudar os médicos a gerir recursos como o oxigénio e os ventiladores para os pacientes que mais precisam deles.
A Federação Africana para a Medicina de Emergência (AFEM na sigla original em Inglês), uma organização internacional não lucrativa , promoveu o uso da ferramenta em 26 países pelo continente africano e “várias instituições foram criadas para lançar estudos de validação em contextos clínicos“, segundo a The Scientist.
Agora, tudo isto está a ser posto em causa e a AFEM já recomendou aos médicos para deixarem de usar a ferramenta, salientando o “embaraço” por ter promovido o seu uso.
O fundador e presidente da AFEM, Lee Wallis, explica à The Scientist que foi a sua organização que contactou a Surgisphere depois de a ter descoberto na Internet.
“O Dr. Desai foi explícito a dizer que não precisava que o logótipo da empresa fosse associado e nem tinha expectativas de que reconhecêssemos o seu envolvimento”, assegura Wallis, frisando que o fundador da Surgisphere “nunca pediu nenhum tipo de apoio ou qualquer outra forma de benefício e expressou repetidamente que queria, simplesmente, fazer isto para ajudar na resposta à pandemia“.
A Sugisphere alegou, desde o início, que não disponibilizaria os dados para os revisores independentes os analisarem porque isso “violaria os acordos com os clientes e os requisitos de confidencialidade”.
“Vieram do nada para conduzir aquele que é, possivelmente, o mais influente estudo desta pandemia, tudo no espaço de semanas. Não faz sentido. Isto exigiria muito mais investigadores do que dizem ter”, aponta o gestor do site MedicineUncensored, que publica resultados de estudos sobre hidroxicloroquina, em declarações ao The Guardian.
A investigação do jornal britânico apurou que a Sugisphere tem apenas uma dezena de funcionários e que o Editor de Ciência será, na verdade, um profissional com experiência como “escritor de ficção”, enquanto na direcção de marketing estará uma pessoa que trabalhará também como “modelo de conteúdos para adultos”.
O The Guardian contactou alguns hospitais que alegadamente terão contribuído para a base de dados que a Sugisphere alega gerir e nenhum deles diz sequer conhecer a empresa.
Por outro lado, é estranho que uma empresa que diz que gere algumas das maiores bases de dados de hospitais de todo o mundo tenha uma presença quase insignificante na Internet.
Noutro âmbito, o fundador da Sugisphere também estará envolvido em três processos onde há suspeitas de negligência médica, mas sem qualquer relação com a sua empresa.
Coronavírus / Covid-19
-
20 Outubro, 2024 Descobertas mais provas de que a COVID longa é uma lesão cerebral
-
6 Outubro, 2024 A COVID-19 pode proteger-nos… da gripe
Sem querer até provocar qualquer sombra de preconceito, me surpreende que os nomes dos intervenientes são bastante exóticos. Só não sei o significado desta observação totalmente isenta.
Os EUA sempre foram e continuam a ser um país de imigrantes. Investigadores de todo o mundo vão para os EUA fazer o seu doutoramento e normalmente ficam. O primeiro e terceiro nomes são Indianos, e julgo que o quarto também.