O que está realmente a acontecer quando alguém fica bêbedo ao ponto de ter um “apagão”? Experiências dos anos 70 testaram os limites da ética para perceber como o álcool apaga a memória.
De acordo com vários estudos, uma grande percentagem de pessoas (66%, num realizado com estudantes) já passou pela experiência de ficar “bêbedo ao ponto de ter um apagão” — ou seja, perder parte da memória após consumir álcool.
No entanto, até há relativamente pouco tempo, este era um fenómeno sobre o qual sabíamos surpreendentemente pouco.
Um dos problemas em estudar este tema (com seres humanos, e não modelos animais) é que seria preciso que pessoas em estado de apagão dessem entrada voluntária no laboratório, ou então confiar no que se lembrassem desses episódios em que, precisamente, não estavam a formar memórias.
No entanto, no passado, havia uma terceira via — pouco ética, nota o IFLS: dar álcool a alcoólicos e realizar testes enquanto atravessavam esses estados de apagão.
Foi exatamente isso que aconteceu no final da década de 1960 e início da de 1970, quando o investigador Donald Goodwin recrutou alcoólicos hospitalizados para participarem numa série de testes invulgares de memória.
Na primeira parte do estudo, os participantes foram questionados sobre as suas próprias experiências de apagão e sobre a forma como os outros descreviam o seu comportamento durante esses episódios.
Talvez de forma surpreendente, Goodwin descobriu que as pessoas pareciam, na maioria dos casos, manter algum controlo sobre as suas faculdades durante esses períodos.
“Os apagões mais dramáticos envolviam viagens”, escreveu Goodwin no estudo que realizou em 1069, publicado em 2018 no British Journal of Psychiatry.
“Cerca de 1/4 dos participantes, enquanto bebiam, tinham pelo menos uma vez dado por si num local sem qualquer memória de como lá tinham chegado. Muitas vezes isso envolvia viagens longas, ao longo de um dia ou mais. Para percorrer tais distâncias, a pessoa tinha obviamente de manter algum controlo sobre as suas capacidades”, diz Goodwin.
“Em alguns casos, as pessoas passaram cheques, embarcaram em aviões, fizeram check-ins em hotéis — mas não conseguiam recordar conscientemente nenhum desses acontecimentos”, acrescenta.
Amigos que os viram nesses estados descreviam-nos como embriagados, mas a comportarem-se de forma relativamente normal.
Conversar com estes doentes revelou informações intrigantes sobre os apagões — por exemplo, é possível tomar consciência de que se está num apagão enquanto se está acordado. Um dos participantes deu por si a dançar, sem qualquer recordação do que tinha feito nas seis horas anteriores.
Num episódio particularmente marcante, um vendedor de 39 anos acordou num “quarto de hotel estranho”. Estava barbeado, e a roupa encontrava-se cuidadosamente pendurada no armário. Ao dirigir-se à receção, o funcionário informou-o de que tinha feito check-in dois dias antes.
O ponto em que estas experiências ultrapassaram a linha da ética que hoje dificilmente seria aceite foi quando Goodwin deu álcool diretamente aos participantes.
Goodwin reuniu voluntários — alguns com histórico de apagões, outros sem — e deu-lhes a beber até meio litro de whiskey ao longo de quatro horas.
Durante esse tempo, avaliou a sua memória remota, memória imediata (capacidade de recordar acontecimentos durante um minuto), memória de curto prazo (30 minutos) e memória recente (acontecimentos imediatamente anteriores ao período de consumo).
Durante a experiência, os voluntários viram uma série de filmes pornográficos. A incapacidade de reconhecer esses estímulos no dia seguinte servia para determinar se tinham tido um apagão.
Goodwin pôde observar diretamente como os participantes conseguiam comportar-se de forma aparentemente normal mesmo durante o apagão.
Noutro teste, segurou uma frigideira na mão e perguntou aos participantes se tinham fome. Depois de responderem, informava-os de que a frigideira estava cheia de ratos mortos.
Curiosamente, os participantes esqueciam esse episódio passados 30 minutos e não o recordavam no dia seguinte, mas conseguiam recordá-lo cerca de dois minutos depois de acontecer — o que sugere que a memória de curto prazo permanecia ativa durante os apagões.
Estas experiências de ética duvidosa deram contudo informação sobre o que pode estar a acontecer durante os apagões causados pela embriaguez, que foi corroborada entretanto por outras experiências em modelos animais.
A melhor ideia que temos neste momento é que a bebida prejudica o hipocampo, uma região do cérebro com papel importante na aprendizagem e na memória.
O problema parece ser não a falha em recordar memórias que lá estão, mas inacessíveis, mas sim a falha em criar essas memórias de longo prazo em primeiro lugar.
“Acreditamos que grande parte do que está a acontecer se deve ao facto de o álcool estar a suprimir o hipocampo, impossibilitando a criação deste registo contínuo de eventos”, disse em 2018 Aaron White, do Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo dos EUA, à BBC. “É como uma lacuna temporária na fita.”