O debate deixou tudo em águas de bacalhau e nem a esquerda nem o governo dão sinais de ceder. Costa admite que o fim da parceria com o PCP e o Bloco é uma derrota pessoal.
A sessão do plenário começou com as declarações de António Costa, que colocou “duas perguntas” para os deputados que vão apreciar a proposta orçamental. “A primeira é saber se tem as prioridades certas face às necessidades do país e dos portugueses” e a segunda é se “é coerente com a estratégia” para Portugal.
O primeiro-ministro considera também que a prioridade do OE2022 é “apoiar o crescimento e a recuperação económica do país”, sublinhando que é também uma proposta “amiga das empresas e do investimento”.
Costa enumerou também várias das propostas que integram o documento, sublinhando a subida dos rendimentos das famílias, “seja pelo aumento dos salários, seja pelo aumento das pensões e prestações sociais, seja pela redução da tributação em sede de IRS e reforço do acesso aos serviços públicos”.
“É com este objetivo de valorização geral do salário que o salário mínimo nacional aumenta para 705 euros no próximo ano, um aumento de 40 euros, o maior aumento anual de sempre do salário mínimo nacional, prosseguindo a meta dos 750 euros em 2023 e dos 850 em 2025”, defende o primeiro-ministro.
O governo quer continuar a “acelerar a convergência das médias do PIB com a União Europeia” e Costa salienta que “pelo quinto ano consecutivo, as carreiras vão manter-se descongeladas e há uma actualização dos salários de acordo com a inflacção”, assim como um “aumento extraordinário das pensões já em Janeiro”.
O primeiro-ministro refere também que o governo quer responder aos desafios demográficos com a gratuitidade das creches ao longo dos próximos três anos, com o combate à pobreza extrema em que 120 mil crianças estão em risco de entrar através da criação da garantia infantil de 600 euros para crianças até aos 17 anos por via de dedução fiscal, do abono de família ou da garantia de 1200 euros.
Outras propostas referidas por António Costa incluem o enquadramento fiscal das start-ups; o reforço do investimento na Cultura, Educação e Ciência; e a criação do estatuto do profissional da Cultura.
António Costa piscou também o olho à esquerda, falando do reforço orçamental para a saúde — que é um dos pontos onde o PCP e Bloco têm mais exigências — e destacando os mais 700 milhões que estão destinados ao SNS, a dedicação plena dos profissionais ao serviço público, a maior autonomia dos hospitais nas contratações e a criação da carreira de técnicos auxiliares de saúde.
Apesar do maior investimento público, o primeiro-ministro não esquece que “ter as contas certas” também é fundamental para garantir a “credibilidade internacional” do país. “Foram as contas certas que permitiram devolver a confiança aos pensionistas de que as suas pensões não sofrem cortes e aos funcionários públicos que as suas carreiras passaram a ser sustentáveis e o poder de compra assegurado”, diz António Costa.
Em jeito de conclusão, o líder do executivo socialista avisa que não faz “chantagens ou ultimatos” e que não fecha “as portas ao diálogo”. “Se o permitirem, a fase da especialidade é o momento é adequado para a discussão em detalhe das propostas e redacções”, declarou, apelando à viabilização do OE no voto na generalidade amanhã.
“Nada justifica pôr termo à caminhada que iniciamos em 2016. Ainda há estrada para andar e devemos continuar”, rematou o primeiro-ministro e numa nova referência à música de Jorge Palma, Costa disse que “enquanto houver ventos e mar a gente não vai parar”.
Costa “muda o isco no anzol cosoante o que quer pescar”
Seguiu-se Rui Rio, que acredita que vivemos um momento de “profunda instabilidade política” e que mesmo que o OE passe, a maioria parlamentar da esquerda já se “desfez por completo”.
“O senhor primeiro-ministro, para tentar passar o orçamento vai ter de pescar à linha, mudando o isco no anzol consoante o peixe que quer pescar. Naturalmente isto em nada dá estabilidade ao país. “Se a geringonça estava no ano passado coxa, hoje a geringonça não consegue andar e está de cadeira de rodas“, acusa o líder social-democrata.
Rui Rio acusou também António Costa de trair o legado político de Mário Soares, que traçou uma “linha vermelha” e recusou associar-se ao PCP.
“Em 2015 quis acantonar-se à esquerda e meter-se nas mãos do PCP e do BE. Mário Soares percebeu que nunca podia ficar nas mãos do PCP e António Costa inverteu toda essa lógica e mais agravou quando disse que não precisaria dos votos do PSD porque se eles existissem demitia-se de imediato”, critica o deputado do PSD.
A proposta de OE também vai continuar a deixar “Portugal na cauda da Europa” do crescimento económico, tendo sido ultrapassado por “países da antiga União Soviética”, diz Rio, que acredita que o “Estado omnipresente” não dá condições às empresas e mostra-se preocupado com o aumento da despesa.
“O Orçamento não responde nem às questões estruturais nem às conjunturais. O governo e o PS estão a pagar a factura de terem ultrapassado a linha vermelha que Mário Soares nunca quis ultrapassar”, rematou Rui Rio.
Em resposta ao líder da oposição, Costa disse que “a última pessoa que imaginava que viesse falar em estabilidade política” era Rui Rio, numa referência às divergências internas do PSD e às eleições directas marcadas para Dezembro entre Rio e Paulo Rangel.
O primeiro-ministro diz também que tem “muito orgulho” por “em 2015 ter rompido com o mito do arco da governação” que estabelecia “um muro de Berlim” entre o PS, PSD e CDS e os partidos “excluídos da participação” e lembra o apoio de Soares à geringonça. “Foi isso que permitiu que Portugal rompesse 16 anos de estagnação para começar a convergir com a União Europeia, crescendo acima da média da UE”, declarou.
Costa criticou também a falta de coerência do PSD, dizendo que o partido não apresentou nenhuma proposta para reduzir a despesa. “Quando fala em receita, tão depressa pede para aumentar o IVA da restauração como a seguir diz que é necessário baixar”, diz. O primeiro-ministro repete também que não se demite e que “as soluções de bloco central empobrecem a democracia”.
Ana Catarina Mendes falou a seguir e apontou contradições na intervenção de Rui Rio. “Na bancada do Partido Socialista não nos equivocamos e não fazemos num dia um discurso a favor da valorização dos salários e no seguinte votamos contra o aumento do salário mínimo”, acusa.
A líder parlamentar do PS exaltou os feitos conseguidos desde 2015 e afirmou que “os portugueses não compreendem que este caminho não possa continuar a ser feito à esquerda”, especialmente porque o OE já inclui medidas dos parceiros à esquerda, do PAN e das deputadas não-inscritas e a proposta foi feita nos mesmos moldes que nos últimos anos da geringonça.
“Não me parece que António Costa tenha mudado, o primeiro-ministro é o mesmo (…) este orçamento não merece o voto contra”, defende, considerando que os portugueses “não querem instabilidade política”.
“Não vale a pena chamar aproximação à recusa”
Uma das intervenções mais esperadas era a de Catarina Martins. “Quando em 2015 assinamos um acordo de legislatura tínhamos um ponto de partida claro – virar a página da estratégia de empobrecimento do PSD e CDS”, começou a líder bloquista.
No entanto, a coordenadora do Bloco refere que esse caminho não vai ser concluído devido à intransigência do governo na reversão da “herança da troika na legislação laboral” e no fim dos “despedimentos baratos, horas extra a preço de salto e dias de férias cortados”.
“O PS recusou, lamentamos essa decisão. O governo decidiu substituir a negociação pelo ultimato. A direita pôs as regras na lei e o PS quer consolidá-las definitivamente“, acusa Catarina Martins, que diz que o governo quer que a esquerda abandone o seu programa através da “chantagem da crise política”.
A coordenadora do BE lembra também um argumento do ex-ministro Vieira da Silva sobre o fim do factor de sustentabilidade nas pensões. Catarina Martins lembra que o socialista disse em Março de 2019 que não fazia “nenhum sentido aplicar o factor de sustentabilidade a uma idade de reforma que resulta desse factor”, lembrando que há uma “inaceitável dupla penalização”.
“Se amanhã não tiver um orçamento aprovado é porque não quer”, declara a coordenadora do BE, que caracteriza também. “Uma a uma, o primeiro-ministro rejeitou – sem explicar ao país porquê – todas as nove medidas que o Bloco de Esquerda apresentou. O Governo fez portanto a sua escolha. Mas ir para eleições, senhor primeiro-ministro, é a escolha errada”, rematou.
António Costa refutou as acusações da líder bloquista, lembrando o “aumento histórico de pensões”, o “maior aumento de sempre do salário mínimo”, a “manutenção do descongelamento das carreiras” e as propostas para as mudanças estruturais no SNS presentes no OE.
“Registei que a senhora deputada não falou de nada do Orçamento. Colocou questões importantes no nosso diálogo mas constam do estatuto do SNS e de alterações laborais”, atirou Costa, num argumento que usou várias vezes durante o debate sempre que a lei laboral veio à conversa.
O primeiro-ministro deixou uma questão à bloquista: “Se está contra as nossas propostas de legislação laboral porque é que não se reserva o voto contra e quer votar contra o orçamento que não tem nada a ver? Nunca houve chantagens e ultimatos, procurámos ir ao encontro uma a uma das preocupações do BE. Diz o BE que os passos são insuficientes. Serão mas o BE não deu um único passo em direcção ao Governo”, disse.
Costa lembra também que não é verdade que o governo não tenha cedido em nenhuma das nove exigências do Bloco, mas confirma que Vieira da Silva era a favor do fim do factor de sustentabilidade — algo que o primeiro-ministro diz que o executivo já eliminou nas carreiras de desgaste rápido
“Não me cabe a mim condicionar o sentido de voto do BE, já no ano passado nos deixaram no combate à pandemia”, rematou Costa, lembrando o voto contra dos bloquistas no Orçamento de 2021.
“Não há futuro para um país baseado em baixos salários”
Do lado dos comunistas, Jerónimo de Sousa assinalou a persistência e abertura do PCP nas negociações com o governo. O líder do PCP diz que o executivo se recusa a ponderar “uma resposta global em que o Orçamento deve inserir-se, mas que vai para lá dele“, respondendo assim às queixas de Costa de que os parceiros de esquerda tenham exigências que não se referem ao OE, mas sim à lei laboral.
O aumento dos ordenados é uma “emergência nacional” e o PCP reforça que em Espanha o salário mínimo já está perto dos 1000 euros e que Portugal se “arrisca a ficar para trás”. “Não há futuro para um país baseado em baixos salários”, critica Jerónimo de Sousa, que aponta também o fim da caducidade da contratação colectiva, o investimento no SNS e os preços da energia como questões prioritárias.
“O país precisa de soluções e o PCP bate-se por elas mas não é com as opções do governo que vamos conseguir tirar o país da situação difícil em que se encontra”, condenou o líder comunista.
Já António Costa discorda, argumentando que o diálogo tem “permitido avanços” e que este ano se avançou “bastante”, como por exemplo, com as mexidas no IRS, o aumento extraordinário das pensões em Janeiro e a gratuitidade progressiva das creches.
“Como é possível votar contra um OE que tem aumento de pensões, de abono de família ….?, pergunta o primeiro-ministro, num discurso que se irá repetir nos próximos meses.
Sobre a subida no SMN proposta pelo PCP, Costa responde que o aumento de 135 euros num só ano seria idêntico aos feitos em toda a anterior legislatura e que representaria mais 500 milhões de despesa pública e um “choque salarial” que as PMEs não aguentariam.
O suicídio da geringonça
Do lado do CDS, o líder parlamentar Telmo Correia considera que António Costa está “entre a espada e o muro”, já que a “geringonça matou a geringonça“. O deputado não percebe a desavença à esquerda já que este OE é “mais socialista” que os anteriores e que continua o caminho do “aumento significativo da dívida pública” do governo do PS apoiado pelo BE e PCP.
Costa andou num “comboio fantasma” e a fazer promessas ao PCP para depois chegar ao debate e lhe baterem “com a porta na cara”, segundo Telmo Correia. O centrista ironizou com uma nova referência a uma canção de Jorge Palma, dizendo que o primeiro-ministro não tem um pé na galera e mas sim os dois “no fundo do mar”.
“Só os senhores podem ficar contentes com o voto contra do PCP e BE”, respondeu Costa, defendendo que em democracia “há sempre soluções”. “Da nossa parte até ao último minuto faremos tudo ao nosso alcance para viabilizar este orçamento, porque é um bom orçamento. Mas não a qualquer preço, porque o país não comporta“, disse.
O primeiro-ministro também não descarta a possibilidade de governar em duodécimos — ou seja, gerir cada mês com 1/12 do OE de 2021 até haver um novo Orçamento, que pode haver só em meados de 2022 — mas deixa o futuro nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa.
“Já tivemos de enfrentar as ameaças por défice excessivo, as ameaças das sanções, a da pandemia, será que temos de enfrentar um orçamento em duodécimos? O que eu desejo é que corra bem”, remata.
PAN não espera milagres e lembra o interesse nacional
A líder do PAN, que se vai abster da votação, afirma que o país vive momentos “bastante difíceis”, mas que o partido não espera “milagres“. “É este Orçamento perfeito? Não, não é. É este Orçamento o que queríamos? Também não”, começa Inês de Sousa Real, mas lembra o progresso conseguido no IRS, incluindo no IRS jovem.
No entanto, a deputada assinala que o OE não tem em conta questões como a saúde mental, as mudanças estruturais na justiça, a emergência climática e que não dá financiamento suficiente para a Cultura.
“Juntar uma crise orçamental a uma crise sanitária sem precedentes é mais do que irresponsável, é ter reais consequências para a vida das pessoas e o futuro do país. Os interesses partidários não podem estar acima dos interesses do país e da vida das pessoas”, sublinha.
Em resposta, António Costa saudou a “postura constructiva do PAN” nas negociações das 156 propostas feitas pelo PAN. O PM confirmou também que Portugal vai criar a primeira rede de bancos de leite materno e duplicar a verba para os transportes públicos. A adaptação das habitações é também uma prioridade, estando previstos 40 milhões de euros para a eficiência energética.
Estatutos da justiça e o “dia fúnebre” da maioria
José Luís Ferreira, do Partido Ecologista os Verdes, considera que o OE2022 está muito aquém do que é preciso para Portugal avançar. O deputado justificou o voto contra do partido com a situação do estatuto dos funcionários da justiça, que devia ter sido concluído em Julho de 2020 e continua num impasse.
Apesar das críticas, José Luís Ferreira aplaudiu a criação da carreira dos guarda-rios, que foi proposta pelo PEV, mas reforça que não compreende a preocupação excessiva com o controlo do défice num contexto de recuperação económica.
Já o único deputado do Chega considera que o OE2022 é o pior desde que o PS subiu ao poder e acusa Costa de ser “o único responsável da situação que estamos a viver”.
Sobre o reforço de 900 milhões de euros na saúde, André Ventura considerou que não vale a pena anunciar números porque há cativações. “Esta maioria parlamentar conheceu hoje o seu dia fúnebre”, disse.
“Pode enganar-se algumas pessoas durante algum tempo, alguns dos parceiros ao mesmo tempo mas não todos. Se este orçamento fosse tão bom não tinha toda a gente a marcar greves nesta semana e na próxima”, acusou Ventura.
Costa corrigiu o líder do Chega, dizendo que “há vários anos que não há cativações no SNS”. O PM ironizou, considerando “comovente” ver Ventura alegre “com a hipótese do OE ser chumbado”, o que prova que esse chumbo será “um enorme erro”.
O último líder partidário a falar foi João Cotrim de Figueiredo, o único deputado da Iniciativa Liberal, que anunciou a morte da geringonça e pediu “paz à sua alma”. “Aconteça o que acontecer e mesmo com a “hipótese remota do OE passar amanhã” este impasse é já uma “derrota pessoal” de António Costa. “Não é um OE de salvação”, critica o liberal.
No cenário de eleições antecipadas, Cotrim de Figueiredo lamenta não ter a oportunidade de apresentar a reforma estrutural do SNS nesta legislatura e questiona Costa sobre o custo das cedências que já fez entre a apresentação da proposta e as negociações à esquerda.”Vai acomodar deixando cair as contas certas ou vai aumentar impostos?”, perguntou.
Costa não negou que a morte da geringonça é uma derrota. “De facto é verdade, se a maioria que formou em Novembro de 2015 se considerar esgotada e se já não tem mais caminho para andar é uma enorme frustração pessoal porque acredito que tinha um enorme potencial para desfazer o que o PSD e CDS fizeram e ir mais além no desenvolvimento do país”, confessou.
OE2022
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