No sábado, um dia depois do ataque aéreo dos Estados Unidos (EUA) que matou o general iraniano da Guarda Revolucionária Islâmica Qasem Soleimani, Donald Trump declarou no Twitter que qualquer retaliação por parte do Irão levaria a mais destruição, apontando como alvo 52 locais de cultura do país.
Após a ameaça do Presidente, vários diretores e executivos de museus norte-americanos manifestaram o seu desagrado quanto às declarações, noticiou o Observer. Na segunda-feira, o Metropolitan Museum of Art , em Nova Iorque, publicou no Twitter uma declaração conjunta do diretor, Max Hollein, e do presidente e CEO, Daniel H. Weiss.
Embora não cite Trump, a declaração refere uma “resposta a comentários recentes sobre o Irão”. “A segmentação de sites de património cultural global é abominável para os valores coletivos da nossa sociedade. O nosso mundo sabe exatamente o que é ganho com a proteção de locais culturais e, tragicamente, o que é perdido quando a destruição e o caos prevalecem”, lê-se na publicação.
“Neste momento desafiador, devemos nos lembrar da importância global de proteger os locais de cultura – os objetos e lugares pelos quais indivíduos, comunidades e nações se conetam à sua história e património. Os líderes e cidadãos de hoje têm muitas responsabilidades profundas – proteger vidas e também o precioso legado das gerações anteriores, pois é desses lugares compartilhados de património cultural que adquirimos a sabedoria para garantir futuros seguros e melhores”, acrescenta ainda.
À medida que se aproximam as próximas eleições presidenciais, e o mundo se torna mais consciente das muitas ameaças à sociedade, os museus estão lenta mas seguramente a ajustar-se ao fato de que as instituições artísticas não podem evitar tornar-se campos de batalha culturais, referiu o Observer.
Com essa mudança, continuou, figuras como Hollein e Weiss tornam-se mais proativas nas respostas oficiais respostas a Trump, no que às artes concerne. Além dois dois citados, outro dos exemplos é o CEO dos Fine Arts Museums of San Francisco, Thomas Campbell.
No Instagram, Campbell escreveu: “Normalmente, os diretores dos museus permanecem nos bastidores, orquestrando diálogos ponderados entre os colegas respeitosos sobre assuntos culturais”.
“Mas quando o Presidente dos Estados Unidos inverte todos os sistemas de valores que o nosso país defendia anteriormente e pede ataques destrutivos contra locais culturais em uma das civilizações mais antigas do mundo, é preciso falar com veemência e urgência”. Ameaçar “locais culturais no Irão é reduzir os valores ocidentais aos fanáticos do ISIS, que destruíram sítios culturais em Mosul, Nínive e Palmira, em 2014 e 2015”, afirmou.
Trump pode ser acusado se atacar património iraniano
As recentes ameaças de Trump fazem lembrar, entre outras destruições de património cultural, a ação sistemática do Daesh contra as cidades históricas de Palmira (Síria), Nimrud e Hatra (ambas no Iraque), depois de entrar num dos principais museus arqueológicos do país, o de Mossul (a partir de 2015).
Contudo, como referiu o Público, a principal diferença entre as ameaças de Trump e os ataques citados reside no facto de a primeira partir de um chefe de Estado de um país democrático e os segundos serem da responsabilidade de grupos extremistas.
Sendo signatários da Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, os EUA estão proibidos de atos hostis contra o património e, caso o façam, bastará para que o Presidente venha a ser responsabilizado criminalmente, de acordo com vários especialistas citados pela imprensa internacional.
“Que isto sirva de aviso – caso o Irão atinja qualquer americano ou quaisquer bens americanos, temos na mira 52 alvos iranianos”, escreveu Trump no Twitter. “Alguns muito importantes para o Irão e para a cultura iraniana. Esses alvos, e o próprio Irão, serão atacados de forma rápida e dura”.
Embora não tenha identificado os 52 locais, o número de ataques referem-se ao mesmo número de norte-americanos feitos reféns na sequência do sequestro da embaixada dos EUA, em Teerão, durante a Revolução Iraniana de 1979.
Ao canal Fox News, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, desmentiu as intenções do Presidente e o seu colega da Defesa, Mark T. Esper, garantiu não haver planos no Pentágono para bombardear os tesouros patrimoniais do Irão, nem mesmo num com a escalada do conflito, escreveu o New York Times.
Esper reconheceu que atingir locais de interesse cultural desprovidos de valor militar seria um crime de guerra. “Seguiremos as leis do conflito armado”, assegurou.
Contudo, no dia seguinte, Trump insistiu na intimidação. “Eles podem torturar e mutilar os nossos. Eles podem usar bombas nas estradas e fazer explodir americanos. E nós não podemos tocar no seu património cultural? As coisas não funcionam assim”, disse.
Líderes mundiais, bem como figuras da política e da defesa dos EUA, já condenaram publicamente as ameaças de Trump. “Não estamos em guerra com a cultura iraniana, mas em conflito com a teologia, os ayatollah e a sua maneira de fazerem as coisas”, disse Lindsey Graham, um advogado da Força Aérea reformado e apoiante de Trump no Senado, citado pelo New York Times.
“Destruir alguns destes sítios iranianos culturalmente importantes não será visto como apenas um ataque ao regime de Teerão, mas como um ataque à história e à humanidade”, acrescentou o democrata Jack Reed, também ele um antigo militar.
De acordo com o Público, na lista na mira de Trump poderá estar Persépolis, capital do império aqueménida; a cidade de Bam, construída entre os séculos VI e IV a.C.; a praça do centro histórico de Isfahan; a Catedral do Santo Salvador, também em Isfahan; e Susa, capital de impérios edificada ao longo de séculos.
Tendo em consideração as convenções de Genebra de 1949, a de Haia de 1954 e a resolução 2347 do Conselho de Segurança das Nações Unidas – que em 2017 condenou os ataques do Daesh e de outras fações armadas -, usar locais de interesse cultural como alvos militares é considerado crime.
Para Sergio Beltrán-García, arquitecto que trabalha a construção da memória em contextos de grande violência, num mundo em que “os conflitos em curso aumentam cada vez mais a distância entre o atacante e o alvo, esta legislação exige obediência dos seus signatários mais do que nunca”.
“A sensação de que os tesouros do passado estão a escapar à nossa proteção é uma das marcas da cultura contemporânea. Contudo, vale a pena lembrar, que a construção dos taliban e do Daesh como inimigos bárbaros torna mais fácil denunciar publicamente [as suas ações contra o património] como crimes de guerra”, indicou ao Guardian.
Devido ao regime “repressivo e não secular”, referiu, o Irão é visto como um “vazio cultural”, o que é falso. “Não podemos separar estes lugares das pessoas. Qualquer mal injustificado que lhes aconteça ou enfraqueça as suas instituições porá de imediato em risco estes sítios, algo que já deveríamos ter aprendido com Palmira e Mossul”, prosseguiu.
Numa reação às ameaças de Trump, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, escreveu no Twitter: “Um lembrete para aqueles que estão a alucinar com a possibilidade de imitar os crimes de guerra do Daesh ao transformar em alvos os nossos bens culturais: durante milénios de história, os bárbaros vieram e devastaram as nossas cidades, arrasaram os nossos monumentos e queimaram as nossas bibliotecas. Onde estão eles agora? Nós ainda aqui estamos, e de pé”.
Sobre o mesmo tema, o Conversation indicou que atacar o património cultural do Irão seria “um crime incalculável contra a humanidade”, não sendo possível “fazer justiça ao valor da sua herança cultural”, que teve um impacto fundamental no mundo, através da arte, da arquitetura, da poesia, da ciência, da medicina, da filosofia e da engenharia.
O legado arqueológico deixado pelas civilizações do Irão antigo e medieval estende-se do Mar Mediterrâneo à Índia e varia entre quatro milénios, desde a idade do Bronze (terceiro milênio a.C.) até a era do Islão clássico e as cidades medievais de Isfahan e Shiraz.
Como frisou o Convsersation, a herança cultural iraniana não tem um lar geográfico ou cultural, as suas raízes pertencem a todos e mostram a influência dos iranianos na criação do mundo atual.