O inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Rui Marques declarou esta quarta-feira que encontrou Ihor Homeniuk “deitado no colchão”, de “barriga para baixo” e “algemado nas costas” quando lhe pediram para levar o passageiro ucraniano até ao avião que o transportaria de regresso.
Falando no julgamento, em Lisboa, em que três outros inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estão acusados do homicídio qualificado do cidadão ucraniano, a testemunha relatou ao tribunal que encontrou Ihor nesse colchão de “plástico azul” com “as calças pelos joelhos” e “molhado”, existindo “mau odor” na sala dos médicos onde o passageiro fora colocado por estar agitado e não provocar distúrbios com imigrantes retidos no Centro de Instalação Temporária do SEF no aeroporto de Lisboa.
O inspetor Rui Marques, que entrou de turno cerca das 15h do dia 12 de março de 2020, dia em que morreu Ihor, disse ter comunicado ao inspetor Gabriel Pinto que o passageiro não estava em condições de embarcar de regresso à Ucrânia, via Istambul, tendo ao passageiro sido retiradas as algemas metálicas, as quais, segundo lhe foi dito, pertenciam ao inspetor do SEF Luís Silva, agora um dos três acusados no processo.
Segundo Rui Marques, quando ele e um colega colocaram o passageiro ucraniano numa cadeira de rodas para o tentar levar até ao avião, que o levaria de regresso, Ihor começou a ter convulsões, “ficou com dificuldades em respirar” e “sem mexer o tórax”.
Desta forma, explicou, decidiram colocá-lo de novo no colchão, tendo sido pedida a ajuda e a intervenção de enfermeiras e pessoal médico.
A testemunha disse ter presenciado posteriormente a intervenção dos socorristas que tentaram reanimar Ihor Homeniuk e a chegada dos médicos do INEM que realizaram outras manobras avançadas de reanimação, numa tentativa que se revelou infrutífera, tendo o óbito sido declarado nessa tarde, por paragem cardiorrespiratória do passageiro.
Na sessão foi ouvido pelo coletivo de juízes, presidido por Rui Coelho, o inspetor-chefe do SEF João Diogo, que esteve de turno entre as 7h e as 15h de 12 de março, o qual admitiu ter sido ele a pedir aos três inspetores agora acusados no processo para irem “acalmar” o passageiro ucraniano que tinha causado “distúrbios” nas instalações do SEF.
Garantiu que pediu aos arguidos Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva para irem resolver a situação do passageiro ucraniano, após um pedido do seu colega João Agostinho, e disse ao tribunal que, na altura, não questionou o colega por que razão este lhe pedira a intervenção de três inspetores, quando o habitual é irem só dois para lidar com um passageiro problemático.
A testemunha assegurou que os três inspetores agora acusados lhe comunicaram posteriormente que “ficara tudo bem” com Ihor e que pediu ao trio de inspetores que comunicasse igualmente ao colega João Agostinho que a situação estava normalizada.
A testemunha teve dificuldade em explicar ao tribunal a necessidade desta dupla comunicação, aparentemente redundante, tendo o seu depoimento ficado também marcado por outras incongruências e suposições.
A testemunha João Diogo referiu que foi informado mais tarde que Ihor tinha “tomado o pequeno-almoço e estava bem“, razão pela qual partiu do “pressuposto que estava desalgemado”, o que na realidade não se verificou, pois Ihor permaneceu algemado nas costas horas a fio, ou seja, até cerca das 17h.
Confrontada pelos juízes do coletivo, a testemunha admitiu que em muitos anos de profissão “não se recorda nunca de ter visto um passageiro algemado”, embora tivesse considerado nesse dia “normal” ter sabido pelos inspetores que Ihor tinha sido algemado. Acabou por admitir, mais à frente, que “quando se algema uma pessoa, [esta situação] já deixa de ser normal”.
O tribunal ouviu ainda o inspetor Ricardo Diogo que, juntamente com um colega, foram as pessoas que retiraram as fitas adesivas das mãos e pés de Ihor. A vítima tinha sido manietada de madrugada pelos vigilantes face à sua agitação e inquietação, tanto mais que os vigilantes de serviço tinham tido dificuldades em chamar os inspetores do SEF nesse horário noturno.
A testemunha contou ao tribunal que o seu colega inspetor Filipe foi “caústico” com os vigilantes que ataram Ihor com fita adesiva, tendo estes justificado que “não havia outra maneira” de o manter quieto.
O julgamento prossegue dia 23 e 24 com a audição das primeiras testemunhas de defesa do inspetor Luís Silva.
“Hoje é um dia triste”
Esta quarta-feira, fez um ano que Ihor chegou a Portugal e o advogado da família, José Gaspar Schwalbach, afirmou que “é um dia triste”. “É verdade que hoje se assinala um ano da chegada a Portugal de Ihor e assinala-se também um ano da receção que Portugal fez a um cidadão estrangeiro”, lembrou.
Nas suas palavras, por tudo isto, “é um dia triste” não só para Portugal como para a família que “vive com a tristeza”.
Schwalbach congratulou-se com o andamento “muito célere” do processo e do julgamento, considerando que “é inequívoco que todos os factos [que constam da acusação] estão a ser provados” em julgamento, em sede de produção de prova.
O advogado disse ainda que ninguém pode “ficar tranquilizado” quando se fica a saber que desde o diretor até ao inspetor de turno tinham “conhecimento do que se estava a passar” com Ihor e não deram ordem para lhe tirar imediatamente as algemas.
Por outro lado, Ricardo Serrano, porta-voz dos advogados de defesa que incluem ainda Ricardo Sá Fernandes e Maria Manuel Candal, declarou que a defesa dos arguidos saiu da sessão “com otimismo”, uma vez que os depoimentos prestados pelas testemunhas vieram demonstrar “aquilo que era a realidade no aeroporto”. “Ficou patente [quais] as regras que estão instituídas no SEF [no aeroporto de Lisboa]. Resulta que é positivo para nós [defesa]”, concluiu.
O crime de homicídio de Ihor Homeniuk terá ocorrido a 12 de março, dois dias após o cidadão do Leste ter sido impedido de entrar em Portugal, alegadamente por não ter visto de trabalho. Segundo a acusação, após ser espancado, Ihor terá sido deixado no chão, algemado, a asfixiar lentamente até à morte.
Três inspetores do SEF estão acusados de homicídio qualificado de Ihor Homeniuk, crime punível com pena até 25 anos de prisão. Dois dos inspetores respondem ainda pelo crime de posse de arma proibida (bastão).
ZAP // Lusa