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Igreja “para todos” não é para “tudo, tudo, tudo”

José Sena Goulão / Lusa

O presidente da Fundação Jornadas Mundiais da Juventude 2023, bispo Américo Aguiar

Américo Aguiar fez um rescaldo da JMJ e da amnistia, a dias de se tornar no novo cardeal e bispo de Setúbal. Visto como “um terrível seguidor de Francisco”, sentiu-se um “danoninho” quando foi elevado a cardeal.

“Isto é um caminho que estamos a fazer. Aliás, escusado será dizer que, quanto mais o Papa dizia ‘todos’, mais eu ficava feliz. E quando em Fátima, o Papa diz — e ele é magnífico, porque tem os textos que estão feitos e, a certa altura é capaz de ler a sua audiência e o contexto e rapidamente se focar — que a Igreja é como esta igreja [Santuário de Fátima], não tem portas, toda a gente entende. Nós não temos o direito de barrar a ninguém o acesso a Cristo”, explica Américo Aguiar.

O homem que, a partir de sábado, passa a integrar o grupo de cardeais da Igreja Católica é, no entanto, perentório a alertar: “Agora, ‘todos, todos, todos’ não se traduz por ‘tudo, tudo, tudo’. Quem ama, quem quer, quem cuida, sabe que o Pai ama, quer e cuida, [mas] isso não quer dizer tudo, tudo, tudo”.

“Ou seja, o nós chamarmos a atenção, o nós corrigirmos, o nós termos considerações, não significa menos amor, menos entrega e menos dedicação, pelo contrário. Portanto, o ‘todos, todos, todos’, na minha interpretação, é que nós não temos o direito de vedar a ninguém o acesso a Cristo”, diz Américo Aguiar, em entrevista conjunta à agência Lusa e à agência Ecclesia.

“A partir do momento em que a pessoa chegou a Cristo, o meu trabalho, a minha fé é que Cristo opere no coração dessa pessoa e a converta”, acrescenta.

E, além das mensagens do Papa, no rescaldo da Jornada Mundial da Juventude, o que ficou para a Igreja em Portugal?

Para já, “vamos tendo notícias do país, das dioceses, no arranque, na retoma. Aliás, há dias, li uma coisa muito interessante, a diocese de Coimbra vai arrancar, ou anunciou, um Sínodo da Juventude. A diocese A, a diocese B, com outras atividades. Isso é fundamental, porque nós acordámos, nós abanámos, nós retirámos do sofá os jovens. Agora não podemos permitir que eles regressem ao sofá”.

Américo Aguiar advoga que “o convite à missão é urgente”, mas avisa que “isso tem o lado do ‘back office’, e dá muito trabalho, é muito exigente”.

“Vamos ter muito trabalho a fazer, naquilo que é, na realidade de cada diocese, o aproveitar a maior riqueza da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, que foi descobrir em todo o país, norte, sul, litoral, interior, continente e ilhas, milhares de jovens portugueses que estiveram a preparar a Jornada e que estão em prontidão para corresponder ao que a igreja lhes proporcionar”, afirma.

E para o conseguir é preciso continuar a “provocar” nos jovens o desejo de alcançar as metas, nomeadamente fazer com que não sejam “administradores de medos, mas empreendedores de sonhos”, como o Papa pediu aos jovens no encontro na Universidade Católica Portuguesa.

“Se queremos inaugurar um tempo novo, os jovens têm de reconquistar o gosto, vontade e a coragem de sonhar, porque, quando nós falamos que os jovens não têm emprego, ganham pouco; não podem comprar casa; compraram casa, mas não têm como pagar; não podem ter filhos; têm filhos, mas não têm onde os deixar, vamos todos ficar um bocadinho deprimidos”, sublinha.

Outro dos legados da JMJ foi a aplicação da lei da amnistia, que levou à libertação de mais de quatro centenas de jovens. Américo Aguiar aponta a importância deste gesto na devolução de esperança a alguém.

“O importante da amnistia foi, humanamente, nós devolvermos esperança a alguém que cometeu uma falha na sua vida. Isto é profundamente humano e ultrapassa a questão religiosa. Quando eu disse ao Papa da possibilidade de amnistia, o Papa ficou felicíssimo exatamente neste registo. Um de nós comete um crime, a sociedade impõe uma pena, nós cumprimos essa pena, é humano termos a capacidade de devolver esperança a essa pessoa”, acrescenta, lamentando as críticas que se ouvem sobre as libertações ao abrigo desta decisão extraordinária.

“Uma coisa é estar a falar com o presidiário ou a sua família, e outra coisa é estar a falar com a família das vítimas ou com a vítima. São totalmente diferentes. O sentimento é totalmente diferente e eu compreendo e conheço os dois. Agora, a grandeza de tudo isto (…) é que quem sofreu as consequências dos atos graves do que tem estado limitado na sua liberdade tem esta grandeza de aceitar que humanamente nós temos de ser maiores do que aquele que cometeu o crime e temos de lhe dizer: ‘nós vamos-te devolver um pozinho de esperança'”, afirma o futuro cardeal.

Elevação a cardeal? Senti-me um “danoninho”

Portugal passa a contar, a partir do próximo sábado, com seis cardeais, quatro dos quais possíveis eleitores num próximo conclave, com Américo Aguiar, o nomeado bispo de Setúbal, a chegar ao cardinalato antes de completar 50 anos.

O principal rosto da organização da Jornada Mundial da Juventude que se realizou em Lisboa em agosto assegura não ter “expectativa nenhuma” em relação à sua elevação a cardeal, reconhecendo que os primeiros sentimentos que sentiu quando, a 09 de julho, foi conhecida a sua nomeação, “foram de medo, foram de incapacidade“, foram de se sentir um “danoninho“.

Rapidamente, porém, surgiu a confiança. “Eu tenho uma coisa — que mesmo quem porventura não me aprecia [reconhece] — que é quando tenho um desafio entrego-me na totalidade a esse desafio, aprendo e tento corresponder e é nessa disponibilidade que vou responder ao desafio”, assegura.

Sobre os motivos concretos da escolha de Francisco, o futuro bispo de Setúbal admite que os contactos frequentes que teve com o pontífice em Roma para a preparação da Jornada tenham sido fulcrais.

“Nós, nos últimos quatro anos, tivemos a graça — e nunca este jovem de Leça do Balio pensou alguma vez privar com o Papa. Portanto, eu acredito e interpreto humanamente que o facto de ter tido seis, oito, 10, 12 audiências privadas com o Papa ao longo destes quatro anos, levou a que ele me mirasse e tirasse as medidas e concluísse e decidisse o que decidiu”, afirma o “cardeal Américo”, como já era conhecido no seminário.

Por outro lado, e como o próprio reconheceu numa entrevista recente ao jornal Observador, é visto por muitos como “um terrível seguidor de Francisco”. Terá esta faceta sido determinante na nomeação para o cardinalato?

“Acredito que sim. O contrário não faria sentido”, diz Américo Aguiar, para quem o Papa, face ao “que é a sua leitura dos tempos atuais da Igreja, dos desafios da Igreja, daquilo que são os desafios futuros da Igreja”, terá valorizado a sua “disponibilidade, sincronização, fidelidade” ao que Francisco significa para o futuro cardeal, mas também o que significaram Bento XVI ou João Paulo II.

O que confessa é que ainda não teve a ousadia de perguntar ao Papa porque é decidiu fazer dele cardeal.

De imediato “choveram” críticas de setores vistos como mais conservadores, mas o até agora bispo auxiliar de Lisboa desdramatiza: “quando estamos à mesa, nós não estamos todos na mesma posição, nem estamos todos com as mesmas proximidades”, diz.

“O que é diferente deve ser oportunidade, deve ser riqueza e deve ser caminho em conjunto. Eu sinto isso”, diz Américo Aguiar, que não deixa de lamentar: “estamos na era da liberdade de expressão, mas parece que quando alguém se expressa de modo diferente daquilo que eu penso dá uma guerra”.

Para o futuro cardeal, que não deixou de responder a todos os críticos que lhe enviaram mensagens sobre a posição tomada a poucas semanas da JMJ, “é uma coisa estranha”. Por um lado, exigimos o respeito pela liberdade de expressão e, depois, reagimos violentamente quando alguém pensa diferente. (…) Dentro de casa, às vezes, há reações que eu acho que não são justificáveis”, diz, nesta entrevista à Lusa e à Ecclesia.

Lusa //

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