Abir Sultan / EPA

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel
Fome intencional tem sido cada vez mais usada como arma — e não, não é parte inevitável da guerra — mas nunca houve condenação em tribunais internacionais por este tipo de crime.
Os apelos para julgar a fome como crime de guerra em vários dos atuais conflitos estão a tornar-se mais frequentes e a ganhar força. “A fome é uma arma que está a ser usada em todo o mundo neste momento. Mas isso tem de acabar, vai contra o direito internacional”, disse Shayna Lewis, conselheira sénior para o Sudão do grupo norte-americano Prevention and Elimination of Mass Atrocities (Paema).
Lewis referia-se à situação na cidade sudanesa de El Fasher, com 30 mil habitantes, que está sitiada há um ano, circunstância que gerou escassez de comida.
“É um crime internacional e precisa de ser julgado como tal”, sublinhou.
Organizações de direitos humanos, como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), têm feito constantemente comentários semelhantes sobre o bloqueio israelita à entrada de ajuda e alimentos na Faixa de Gaza.
“Israel está a matar Gaza à fome. É genocídio. É crime contra a humanidade. É um crime de guerra”, disse ainda na semana passada Michael Fakhri, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, ao jornal britânico The Guardian.
Esta sexta-feira, um grupo independente de segurança alimentar apoiado pela ONU confirmou oficialmente, pela primeira vez, que está a ocorrer uma situação de fome severa na Faixa de Gaza.
“Após 22 meses de conflito incessante, mais de meio milhão de pessoas na Faixa de Gaza enfrentam condições catastróficas caracterizadas por fome, miséria e morte”, afirmou o grupo.
A fome em Gaza foi declarada com base na avaliação de provas recolhidas e analisadas pelo mais conceituado sistema internacional independente de segurança alimentar, apoiado pelas Nações Unidas e conhecido como Integrated Food Security Phase Classification (IPC – Classificação Integrada da Segurança Alimentar).
A classificação é composta por cinco fases, sendo a fase 5 a que revela uma situação de fome severa e na qual se encontra o norte de Gaza, onde mais de meio milhão de pessoas “enfrentam condições catastróficas caracterizadas por fome, miséria e morte”.
Simultaneamente, outras 1,1 milhões de pessoas (54% de toda a população) encontram-se na fase 4, que indica uma emergência alimentar.
Fome como arma de guerra, crime nunca julgado
De acordo com especialistas, os crescentes apelos para julgar a fome de civis como crime de guerra resultam do aumento da fome provocada por conflitos. Durante a primeira década deste século houve poucas situações desse género, segundo um relatório da World Peace Foundation (WPF), mas isso mudou recentemente.
“Este é um fenómeno antigo, usado há séculos em conflitos”, afirma Rebecca Bakos Blumenthal, consultora jurídica do projecto Accountability for Starvation da fundação jurídica neerlandesa Global Rights Compliance (GRC). Segundo a especialista, esta tática ressurgiu depois de 2015.
Na última década, a fome foi registada em conflitos na Nigéria, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iémen. Especialistas em segurança alimentar avaliam que os ataques russos à agricultura ucraniana também podem ser vistos como tentativas criminosas de transformar os alimentos em armas. Argumentam ainda que houve um aumento deste tipo de crime de guerra.
“Mesmo com a melhoria da segurança alimentar global, os incidentes de fome estão a aumentar”, salienta Alex de Waal, professor na Universidade Tufts, nos EUA, e diretor de investigação sobre fome em massa na WPF. “Isto mostra que a segurança alimentar global é mais volátil e desigual. É consistente com o uso da fome como arma”.
A retenção deliberada de comida e bens essenciais à sobrevivência de civis é considerada crime de guerra por muitos países e também em várias disposições do direito internacional, como a Convenção de Genebra, que estabeleceu normas para o direito humanitário internacional, e o Estatuto de Roma, aplicado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).
Apesar desta classificação, até hoje, ninguém que tenha usado esta tática num conflito foi levado a julgamento. O crime de guerra de fome nunca foi julgado de forma isolada num tribunal internacional, apenas como parte da acusação em cerca de 20 outros casos de crimes de guerra.
O facto de civis passarem fome num conflito não significa automaticamente que foi cometido um crime. “Uma das questões jurídicas é a intenção. O crime de guerra de fome exige que o perpetrador atue com essa intenção“, explica de Waal.
A fome ocorre a longo prazo, acrescenta de Waal, e alguns juristas argumentam que é necessário provar que o perpetrador teve desde o início, por exemplo, de um bloqueio ou cerco, a intenção de matar de fome civis. A maioria dos especialistas, contudo, defende a ideia de “intenção indireta”. Ou seja, é evidente que essa situação ocorrerá “no curso normal dos acontecimentos”, e o agressor sabe disso, tendo oportunidade de evitar que os civis passem fome, mas não o fez.
Outro problema nos casos que envolvem fome é a falta de precedentes, além da definição de quais tribunais nacionais e internacionais teriam jurisdição sobre os supostos crimes de guerra.
“O que falta? Vontade política”
Até há alguns anos, a fome era vista como uma questão de desenvolvimento ou humanitária, diz Blumenthal, da GRC. Mas agora está a ser dada mais atenção aos aspetos criminais.
“Trabalho nesta questão há alguns anos e estas coisas avançam lentamente”, conta Blumenthal, que se dedica ao tema desde 2020. “Acredito, no entanto, que a situação está a mudar e que algumas medidas relevantes foram tomadas nos últimos dez anos”.
Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que condenou o uso da fome de civis como método de guerra. Em 2019, foram feitas alterações ao Estatuto de Roma, tornando a fome um crime de guerra também em conflitos armados locais, e não apenas internacionais. Houve inquéritos da ONU sobre conflitos no Sudão do Sul e na região de Tigray, na Etiópia, focando especificamente a questão da fome como crime de guerra, acrescenta Blumenthal.
“Estamos a ver mais organizações internacionais e locais, juntamente com mecanismos de responsabilização, a denunciar isto e certos exemplos marcantes, como no caso de Gaza, ampliaram a consciencialização sobre este crime”, salienta a especialista.
Blumenthal destaca que os mandados de captura emitidos pelo TPI contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro israelita da Defesa Yoav Gallant, em novembro de 2024, são um “marco histórico” por mencionarem especificamente a fome como crime de guerra. Foi a primeira vez que mandados destacaram a fome como crime isolado. Acrescenta ainda que o tribunal tem aberta uma investigação sobre o Sudão.
“A questão, sem dúvida, ganhou atenção nos últimos dez anos. Todas as estruturas legais estão em vigor. O que falta é vontade política para agir”, avalia de Waal.
Fome não é parte inevitável da guerra
De Waal sublinha que ainda há desafios jurisdicionais, mas mostra-se confiante de que em muitos casos é possível haver condenações. “Basta levar o acusado a tribunal”.
Blumenthal concorda. “Há equívocos sobre isto e muitos pensam que a fome é uma parte inevitável da guerra. Mas, durante as nossas investigações aprofundadas, é surpreendente a rapidez com que se torna claro que, na verdade, esses padrões são muito acentuados e em muitas situações é possível discernir uma estratégia deliberada”.
Com cautela, Blumenthal mostra-se optimista de que aqueles que usaram a fome de civis deliberadamente como arma de guerra enfrentarão em breve a justiça. “Essa é certamente a esperança. É para isso que estamos a trabalhar”.
ZAP // DW
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