Assinala-se, nesta quinta-feira, o Dia Mundial das Hepatites que continuam a ser uma “ameaça de saúde pública” em Portugal, muitas vezes silenciosa, uma vez que muitas pessoas não sabem estar infectadas.
A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG) alerta para a necessidade de um rastreio universal às hepatites, pedindo maior celeridade e menos burocracia no acesso aos tratamentos, que nalguns casos ainda demoram meses.
Esse rastreio universal só será possível “com a contribuição” dos médicos de família dos utentes e será essencial para o objectivo de eliminar as hepatites até 2030, como vinca o presidente da SPG, Guilherme Macedo, em declarações à Lusa.
Macedo destaca a “importância” e a “necessidade” de se fazerem, “pelo menos uma vez na vida, os testes das hepatites víricas”. Até porque estas “não dão nenhuma manifestação clínica” e, portanto, é preciso “procurar activamente” estas doenças que têm cura se detectadas precocemente.
Neste âmbito, o médico destaca que é preciso que o Ministério da Saúde facilite “a acessibilidade das pessoas ao teste e aos tratamentos”, lamentando que, sobretudo neste último caso, o processo ainda é muito burocrático.
“Há uma assimetria muito grande no país que está muito dependente de uma complexidade burocrática que não faz qualquer sentido”, defende Macedo, notando que em alguns locais, pode demorar “duas ou três semanas ou quatro semanas”, enquanto noutros pode “demorar meses“. “E isso é muito dissuasor para os doentes e é francamente perturbador para os médicos”, considera.
O presidente da SPG defende igualmente que, tal como acontece noutras situações, como no VIH, o acesso à medicação devia ser facilitado logo na consulta. “No caso da infecção por VIH, quando a pessoa tem a consulta faz-se o pedido e o doente vai imediatamente à farmácia hospitalar buscar a medicação”, refere.
Mas “isto ainda não acontece para as hepatites, em particular para a hepatite C“, o que é “completamente anacrónico, e até um bocadinho ridículo”, sublinha. “Ao fim destes anos todos, em que temos os melhores argumentos para tratar, em que temos toda a experiência e toda a capacidade instalada no país para poder tratar estes doentes”, é lamentável que “isto ainda não se consiga fazer”, insiste.
“Qualquer pessoa pode ter hepatite vírica sem saber”
Macedo também vinca que há “populações vulneráveis” que “nem sequer às consultas hospitalares vão”. E o pior é que estas pessoas, com poucos recursos sociais e económicos e afastadas do sistema de saúde, funcionam, muitas vezes, como reservatório destas infecções.
“E a expressão ‘reservatório’ é boa. Significa que elas têm, mas qualquer comum mortal que não tenha esse estigma social e económico ou cultural pode ter uma hepatite vírica sem saber“, alerta o especialista.
Macedo reforça, assim, a importância de “atacar em todas as frentes”, lembrando que a doença “tem cura”, mas também uma implicação social, biológica, individual e económica “tremenda”.
“Alguém que não saiba que tem uma hepatite crónica, por exemplo, pelo vírus C, durante muitos anos, essa doença só se vai manifestar numa fase muito avançada, em que muitas vezes só já vamos poder tratar a pessoa cirrótica ou, às vezes, com outras complicações mais graves, como cancro do fígado“, avisa ainda.
Plano para erradicar hepatites virais até 2030
Um relatório da Direcção-Geral da Saúde (DGS) recomenda que Portugal deve traçar uma estratégia para eliminar as hepatites virais até 2030, cumprindo os objectivos internacionais de reduzir a incidência em 90% e a mortalidade associada em 65%.
A meta consta do relatório de 2022 do Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV), um dos programas de saúde prioritários da DGS, que caracteriza a situação do país e que traça o plano de acção até 2024, identificando as prioridades e as metas a alcançar no âmbito dos objectivos da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Este mesmo relatório destaca as hepatites virais como uma “ameaça de saúde pública”, enaltecendo alguns dos meios disponíveis para as combater, designadamente a vacina contra a hepatite B, com elevadas taxas de cobertura.
A DGS também realça que a hepatite C é a primeira infecção crónica viral e oncogénica com cura possível, estando o tratamento disponível em Portugal desde 2015 com taxas de cura superiores a 95%.
Há cinco hepatites, mas mais relevantes são B e C
Apesar de serem conhecidas cinco hepatites (A, B, C, D e E), as mais relevantes são as hepatites B e C, sendo os seus agentes causadores classificados como vírus que podem evoluir para casos crónicos e para cirrose hepática com elevado risco de carcinoma hepatocelular.
No que se refere à vigilância, o relatório indica que o número total de casos confirmados de hepatite A manteve-se estável entre 2015 e 2020, mas com um elevado número em 2017 (641) devido a um surto. Com excepção desse ano, o número anual de casos variou entre 20 (2020) e 82 (2018) neste período.
Quanto à hepatite B, o número total de casos notificados manteve-se estável em 2017 (175) e 2018 (176), com um aumento em 2019 (220) e diminuição em 2020 (129).
Já o número de casos confirmados de hepatite C entre 2017 e 2020 são, em dados absolutos, superiores aos da hepatite B, verificando-se um padrão semelhante por sexo.
“Os dados disponíveis mostram que a prevalência da hepatite B é muito reduzida entre utentes activos consumidores de substâncias ilícitas (injectáveis ou não), mas muito elevada para a hepatite C, aumentando significativamente no grupo de pessoas consumidoras de drogas por via injectável”, alerta o documento.
Relativamente à população reclusa, em 31 de Dezembro de 2021, encontravam-se nessa situação 11.167 pessoas, com prevalências de hepatite B e C de 1,9% e 7,3%, respectivamente.
Portugal tem elevada taxa de transplante hepático
O relatório da DGS analisa ainda o surto de hepatite aguda de causa desconhecida em idade pediátrica, adiantando que, de 28 de Abril até 3 de Julho de 2022, foram reportados em Portugal 23 casos suspeitos. Após investigação, foram descartados quatro casos por apresentarem uma causa alternativa que justificava a hepatite.
Ao nível do transplante hepático, “Portugal é um dos países do mundo com uma das mais elevadas taxas”, refere o relatório, que atribui isso à eficiência do sistema de colheita de órgãos.
“No entanto, parece existir uma tendência para redução do número de casos de transplante hepático associado à hepatite C, decorrente do uso generalizado dos antivíricos de acção direta [AAD]”, indica a DGS.
Tratamentos da hepatite C caíram mais de 40%
O número de tratamentos da hepatite C iniciados em 2020 e 2021 caiu mais de 40% em Portugal, uma redução que pode ser atribuída à pandemia de covid-19, alerta o relatório do PNHV divulgado pela DGS.
O relatório, que é apresentado hoje, no Dia Mundial das Hepatites Virais, salienta o aumento do número de testes de anticorpo ao vírus da hepatite C realizados em 2021, traduzindo “já uma retoma da actividade, apesar das segunda e terceira vagas da pandemia”.
“Ainda assim, da avaliação pelo grau de fibrose, 43% dos doentes apresentava uma fibrose avançada previamente ao início de tratamento, valor inferior ao verificado nos primeiros dois anos após disponibilização dos novos AAD”, alerta o documento.
O PNHV considera este um valor elevado, particularmente a percentagem de cirrose, o que leva a “pensar que ainda existe um número importante de doentes em risco elevado de carcinoma hepatocelular, pelo que importa unir esforços para diagnosticar os doentes que necessitarão de intervenção médica”.
Em 2015, Portugal adotou a estratégia de tratar com AAD todas as pessoas infectadas pelo vírus da hepatite C, independentemente do estádio da doença, assumindo-se como “um dos primeiros países, a nível europeu e mundial, a implementar esta medida conducente à eliminação da hepatite C até 2030”, recorda o PNHV.
De acordo com o relatório, os dados mais recentes da monitorização do tratamento da hepatite C indicam que foram autorizados 30.086 tratamentos com estes medicamentos, dos quais 28.844 já iniciados.
“Quando se restringe a análise ao universo de indivíduos que já concluíram o tratamento e em que se pode avaliar a resposta virológica sustentada, verifica-se que 18.074 estão curados (96,7%) contra 623 doentes não curados (3,3%)”, sublinha o PNHV.
Em 20% dos doentes, a hepatite C crónica pode conduzir à cirrose e ou ao cancro no fígado.
Não existe vacina contra a hepatite C e a prevenção da infecção passa por evitar, sobretudo, o contacto com sangue infectado.
ZAP // Lusa