Estamos a um passo de falar com outras espécies. Algumas já pediram a palavra

ZAP // lifeonwhite / Depositphotos

Avanços recentes na investigação com recurso à Inteligência Artificial sugerem que em breve poderemos comunicar com outras espécies. Golfinhos, baleias e orangotangos lideram a corrida.

Durante séculos, acreditámos que a linguagem era um traço exclusivo da espécie humana.

Mas essa ideia está rapidamente a desfazer-se, à medida que cientistas recorrem à Inteligência Artificial para decifrar os complexos sistemas de comunicação de animais que vão dos chocos aos golfinhos — avanços que poderão, em breve, abrir caminho a conversas reais entre humanos e outras espécies.

Um dos primeiros sinais desta revolução surgiu no mar. Num estudo pré-publicado em abril no bioRxiv, a bióloga Sophie Cohen-Bodénès observou um choco a levantar dois tentáculos e a entrelaçar os restantes seis num movimento peculiar. A investigadora batizou-o de “sinal para cima“.

Mais surpreendente ainda: o animal estava a reagir a um vídeo de outro choco a fazer exatamente o mesmo. Ou seja, estavam a comunicar através de gestos.

A investigação nesta área está a ganhar fôlego graças a projetos como o Coller Dolittle Challenge, que oferece 100 mil dólares anuais a estudos inovadores e promete um prémio de dez milhões de dólares à primeira equipa que conseguir estabelecer verdadeira comunicação com outra espécie.

Mas o grande salto está a ser dado pela IA, salienta a New Scientist.

“A Inteligência Artificial permite-nos processar dados em grande escala e de forma muito mais rápida”, explica Frants Jensen, investigador da Universidade de Aarhus, na Dinamarca.

A IA permite aos cientistas conduzir análises até agora impensáveis. No seu estudo, Sophie Cohen-Bodénès já identificou quatro sinais distintos nos chocos, incluindo o que chama de “coroa”, em que os tentáculos se juntam em forma de pirâmide — que usam quando se sentem desconfortáveis com alguma coisa.

Outros exemplos multiplicam-se. Investigadores do Instituto Max Planck descobriram que os rouxinóis conseguem imitar de imediato o canto de outros indivíduos, algo que se pensava ser exclusivo da fala humana. Já em primatas, foi revelado que os saguis usam sons específicos para se chamarem pelo “nome”.

Também os elefantes se têm revelado bons comunicadores. Já sabíamos que cantam canções que os humanos não conseguem ouvir, dão nomes uns aos outros, cumprimentam-se, e sincronizam sons entre si. Ficámos recentemente a saber que conseguem pedir comida através de gestos.

Mas é entre os golfinhos que nos últimos anos surgiram as descobertas mais notáveis nesta área.

A bióloga Laela Sayigh, investigadora do Woods Hole Oceanographic Institution que recentemente ganhou um dos prémios anuais do Coller Dolittle Challenge, analisou décadas de gravações de uma comunidade de 170 golfinhos-roazes na Florida, com a ajuda de Inteligência Artificial.

No seu estudo, Sayigh identificou 22 assobios partilhados por vários indivíduos da comunidade. Um destes sinais, usado por mais de 35 indivíduos quando algo inesperado acontece, parece significar “O que foi aquilo?”. Outro dos assobios funciona como um alerta.

Estes sinais juntam-se aos famosos “assobios exclusivos” de cada golfinho, usados para se identificarem, e ao facto de mudarem o tom da voz quando comunicam com as crias, tal como os humanos fazem com os bebés.

Alguns estudos sugerem até que poderão falar sobre golfinhos ausentes, usando os seus assobios característicos; e em 2024, um golfinho triste, que talvez só quisesse um amigo, foi apanhado a “falar” sozinho.

As baleias apresentam pistas igualmente fascinantes. O Project CETI, que pretende decifrar a comunicação dos cachalotes (não confundir com a iniciativa SETI, que nos quer por a falar com ETs), já identificou 156 padrões de cliques nestes cetáceos, que funciona como um verdadeiro “alfabeto fonético”.

A IA revelou ainda que estes sons lembram vogais humanas; e também o canto das baleias jubarte mostra padrões estatísticos semelhantes aos de uma linguagem.

Mas nem tudo é simples. Perceber o significado dos sinais exige compreender o contexto em que surgem — e isso é difícil em animais que passam a maior parte da vida debaixo de água.

casos ainda mais desafiantes, como o dos orangotangos, diz o primatologista português Adriano Lameira, investigador da Universidade de Warwick, no Reino Unido, que já em 2017 sugeria que os beijos de orangotangos podem guardar o segredo da origem da fala humana.

Num estudo de 2018, Lameira e o seu colega Josep Call descobriram que estes grandes primatas têm a capacidade de comunicar sobre eventos passados, depois de constatar que as mães atrasavam os seus chamamentos de alarme para as suas crias em até 20 minutos depois de avistarem um predador.

Num trabalho recente, que está ainda em revisão por pares, a equipa de Adriano Lameira descobriu entretanto que os orangotangos alteram a acústica dos chamamentos para permitir ao interlocutor perceber quanto tempo passou desde que um dado evento aconteceu.

Isto torna difícil aos investigadores descobrir o contexto de um chamamento específico. “Está a referir-se ao momento atual ou a quando o evento foi visto?”, pergunta Lameira. “Não fazemos ideia“.

Decifrar a comunicação animal não será apenas uma conquista académica; pode mudar a forma como olhamos para as outras espécies e até abrir novas formas de perceber o mundo.

Mas uma coisa parece certa: estamos a um passo de descobrir que os humanos não são os únicos capazes de comunicar de forma complexa. A questão não é se vamos conseguir decifrar a comunicação animal, mas qual será a primeira espécie a partilhar connosco os seus segredos.

Armando Batista, ZAP //

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.