Zelenskyy: de “mais do mesmo” a herói do mundo livre (ou só o actor certo para o papel)

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Volodymyr Zelenskyy, Ucrânia

Volodymyr Zelenskyy, presidente da Ucrânia

No dia em que Volodymyr Zelenskyy, presidente da Ucrânia, discursa no Parlamento português, por via remota, o ZAP traça o percurso do homem que há cerca de seis meses estava em fim de linha, com a popularidade em baixa e a ser visto como “mais do mesmo”, e com alguns escândalos pelo meio.

Volodymyr Zelenskyy tornou-se presidente da Ucrânia em 2019, com 73% dos votos. Mas no final de 2021, a percentagem dos ucranianos que o apoiavam rondava menos de 30% da população, segundo várias sondagens.

Assim, foi um líder em queda e que já temia não ser reeleito para um segundo mandato que se tornou um improvável herói depois da invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Sob o seu comando inspirador, os ucranianos têm resistido de forma estóica, e surpreendente, aos avanços do inimigo russo.

Nenhum ucraniano esperaria tanto de Zelenskyy. E Putin, certamente, não esperava a resiliência do homem que se tornou famoso na Ucrânia como actor – e esse pode ter sido um dos grandes erros do presidente da Rússia.

Mas, para percebermos melhor a espantosa ascensão de Zelenskyy, que é visto, actualmente, como o grande líder do mundo livre, é preciso recuar ao passado recente e a alguns dos escândalos que o envolveram.

Vitória sem precedentes (e improvável)

A chegada de Zelenskyy ao poder na Ucrânia é quase idêntica à história da comédia que mais o celebrizou no país. Na série “Servant of the People” (“O Servente do Povo”), o líder ucraniano faz de um humilde professor de História cujas críticas anti-corrupção são filmadas por um estudante, tornando-se virais online, o que lhe vale a posterior eleição como presidente.

A realidade foi mais ou menos semelhante, com Zelenskyy a fazer uma campanha eleitoral contra a corrupção e contra os oligarcas, aproveitando a onda de revolta da população contra a classe política ucraniana.

Acabou a ser eleito presidente, com 73% dos votos, derrotando Petro Poroshenko que está na política há duas décadas.

Pela primeira vez na história de um país pós-soviético, um indivíduo sem qualquer experiência política, ou sequer nas áreas da segurança ou da administração pública, foi eleito presidente. Um feito assinalável, sobretudo tratando-se de um actor de comédia.

Zelenskyy é também o primeiro presidente judeu eleito na Ucrânia.

Além disso, o partido que fundou obteve uma maioria sem precedentes no Parlamento ucraniano, conquistando 254 lugares em 450 possíveis. Note-se que esse partido tem o mesmo nome da série cómica que Zelenskyy protagonizou – se não fosse verdade, parecia coisa de filme!

O candidato do “super-perigoso” Kolomoisky

Durante a campanha eleitoral, Zelenskyy fez muitas promessas irrealistas, usando o combate contra a corrupção como a sua principal “bandeira”.

Contudo, se as suas palavras eram contra os oligarcas do país, e a teia de interesses e de subornos que minam a sua economia, o então actor tinha no maior oligarca ucraniano da altura, o seu principal apoiante.

Ihor Kolomoisky, que já foi um dos homens mais poderosos da Ucrânia, é detentor de vários meios de comunicação social que apoiaram a campanha de Zelenskyy. Foi aliás no canal de televisão 1+1, pertencente ao oligarca e onde a série “Servant of the People” era emitida, que Zelenskyy fez o anúncio da sua candidatura a presidente.

Durante a campanha, o agora herói ucraniano era visto como “o candidato de Kolomoisky” que sempre assumiu o desejo de que o ex-Presidente Poroshenko saísse do poder depois de ter sido demitido por este, em 2015, do cargo de Governador da província de Dnipropetrovsk.

Além disso, Poroshenko também apoiou a nacionalização do PrivatBank, um dos maiores bancos da Ucrânia que era propriedade de Kolomoisky quando o oligarca foi acusado de ter desviado cerca de 5,5 mil milhões de dólares da instituição.

Esse dinheiro terá sido desviado para empresas offshores em locais como Cleveland, nos EUA, para “esconder e lavar milhares de milhões de dólares”, como avança a revista The Spectator.

Kolomoisky enriqueceu no pós-União Soviética, nos primeiros anos da Ucrânia independente, recorrendo a subornos a juízes locais, mas também a métodos violentos, para tomar o controle de antigas empresas estatais nas áreas do aço e do petróleo.

A The Spectator nota relatos de que manteria “um tanque de tubarões no seu escritório” que enchia com um líquido que parecia sangue, “sempre que queria intimidar um visitante”.

Quando os russos começaram a invadir a Ucrânia em 2014, Kolomoisky financiou uma milícia e transformou-se numa espécie de “senhor da guerra”, como refere à The Spectator um diplomata americano, classificando-o como “super perigoso”.

Em 2021, os EUA sancionaram o oligarca pelo seu “envolvimento em corrupção significativa“.

Zelenskyy “não seria o que é hoje sem Kolomoisky”, como repara a The Spectator.

Nos últimos anos, Zelenskyy e Kolomoisky ter-se-ão distanciado e o oligarca chegou a manifestar posições onde defendia uma parceria Ucrânia-Rússia, deixando o seu lado patriota de parte.

Mas também vieram a público notícias, em 2021, de que Zelenskyy chegou a quebrar a quarentena de covid-19 para ir a um aniversário no apartamento de Kolomoisky em Kiev.

Apanhado nos Pandora Papers

Na altura da campanha eleitoral, chegaram a ser divulgados documentos a atestar que uma empresa offshore detida por Zelenskyy e pelos seus sócios teria recebido 41 milhões em fundos provenientes do banco de Kolomoisky. Mas esses dados nunca foram provados.

Contudo, em Outubro de 2021, os Pandora Papers colocaram Zelenskyy entre vários políticos europeus que usaram empresas em paraísos fiscais para esconderem a sua riqueza.

A pesquisa do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (OCCRP na sigla original) analisou milhares de ficheiros e constatou que Zelenskyy e os seus sócios da produtora de televisão Kvartal 95, os responsáveis pela série que o consagrou, eram beneficiários de uma rede de empresas sedeadas em offshores como as Ilhas Virgens Britânicas, o Chipre e o Belize.

Esse esquema de empresas-fantasma já existiria desde, pelo menos, 2012, o ano em que a produtora começou a fazer programas de forma regular para canais de televisão detidos por Kolomoisky.

Entre os sócios de Zelenskyy estava Serhiy Shefir, actual assessor principal do presidente ucraniano, e Ivan Bakanov, Chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia que investiga, muitas vezes, casos de corrupção no país.

Essas offshores terão sido usadas para negociar, pelo menos, três propriedades no centro de Londres – uma terá sido comprada em 2016, por 1,56 milhões de libras por uma empresa com sede no Belize detida por Shefir. O mesmo Shefir terá comprado outra propriedade por 2,2 milhões de libras em 2014, também através de uma offshore. E outro sócio da Kvartal 95, Andrii Iakovlev, terá adquirido um apartamento no centro de Londres por 1,5 milhões de libras.

Não há indicações de que Zelenskyy tenha participado nestes negócios imobiliários, mas há indícios de que seria beneficiário na rede de offshores envolvidas.

Mesmo antes de ser eleito presidente em 2019, Zelenskyy transferiu a sua participação numa empresa offshore para Shefir, sem o envolvimento de qualquer pagamento, como documentam os Pandora Papers.

Logo depois, foi registado um acordo que permitiu à empresa continuar a pagar dividendos a uma outra empresa da mulher de Zelenskyy, Olena Zelenska, que será a única beneficiária desta sociedade.

Assim, Zelenskyy conseguiu distanciar-se da rede de offshores, mas pode, ao mesmo tempo, ter assegurado que continuaria a receber dividendos das mesmas.

“Um presidente não devia ter empresas offshores. Em geral, as empresas offshores são más” porque estão associadas a “evasão fiscal ou lavagem de dinheiro sujo“, revela ao OCCRP o homem que Zelenskyy elegeu como principal procurador da Ucrânia, em 2019, Ruslan Ryaboshapka, e que foi afastado da função em 2020.

Ryaboshapka acredita que foi afastado por pressão de Kolomoisky e considera que transferir dinheiro para paraísos fiscais é “uma velha tradição” na Ucrânia por o país ser visto como um lugar “sem lei”.

Os estilhaços da lei anti-oligarcas

Outro dos momentos tensos da presidência de Zelenskyy foi a zanga com o ex-braço-direito, Dmytro Razumkov, que, em 2019, foi apontado como um dos grandes responsáveis pela sua chegada ao poder.

Razumkov tornou-se o líder oficial do partido de Zelenskyy e número um nas listas eleitorais, o que o levou ao Parlamento, onde acabou por chegar a Presidente deste órgão. Mas foi demitido do cargo por uma coligação incomum composta por uma boa parte dos deputados do seu próprio partido, do partido de Yulia Tymoshenko e de outros grupos parlamentares controlados por oligarcas.

A demissão ocorreu a meio de uma disputa em torno de um projecto de lei que visava combater a influência dos oligarcas e que foi impulsionado pelo próprio Zelenskyy.

A lei anti-oligarcas, como ficou conhecida, criou um registo dos oligarcas, impedindo-os de financiarem partidos políticos ou de participarem em privatizações.

Esta lei surgiu depois de Shefir ter sido alvo de uma alegada tentativa de assassinato, em Kiev, em Setembro de 2021. O presidente ucraniano deu a entender que esse incidente terá sido motivado pela sua luta contra os “interesses estabelecidos”.

Mas os partidos da oposição depressa acusaram Zelenskyy de ter criado “um enorme espaço para a corrupção” com esta lei pelo facto de atribuir a um órgão presidencial a autoridade para determinar quem é oligarca e, assim, decidir quem pode ter, ou não, o controlo dos media.

E Razumkov também se atirou a Zelenskyy, acusando-o de esquecer as promessas que fez ao povo em 2019, ao contrário dele. Antes da guerra despoletada pela Rússia, o ex-aliado do presidente ucraniano era visto como um possível adversário político numa futura corrida eleitoral.

De “alternativa radical” a mais do mesmo…

No final de 2021, antes da guerra fratricida com a Rússia, a percentagem de apoiantes de Zelenskyy rondava menos de 30% da população. Uma sondagem realizada em toda a Ucrânia, entre 15 e 18 de Outubro de 2021, pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev dava a Zelenskyy apenas 24,7% das intenções de voto.

Mesmo assim, ficava à frente dos outros potenciais adversários, Poroshenko (15,6%) e Yulia Tymoshenko (12,2%).

De acordo com o Statista, a taxa de aprovação de Zelenskyy, nesse mesmo mês, era de apenas 28%.

Assim, não é de admirar que, em Novembro de 2021, se chegasse a prever “o fim da alternativa Zelenskyy”, como vaticinava o Consultor Sénior Mykhailo Minakov do Instituto norte-americano Kennan que se dedica a estudar a Rússia e a Eurásia.

No âmbito de uma mesa redonda online, Minakov lançava a discussão sobre a forma como Zelenskyy tinha passado de uma “alternativa radical ao cinismo político” para se tornar “tal como todos os outros” políticos, face ao declínio do apoio popular.

Já a directora e investigadora da plataforma Fórum da Ucrânia da consultora de análise Chatham House, Orysia Lutsevych, questionava, também em Novembro passado, o estilo de liderança de Zelenskyy, lançando dúvidas pela sua falta de experiência política. Mas até lhe apontava a falta de “uma bússola moral e de força de carácter”.

Lutsevych também evidenciava que a gestão da pandemia de covid-19 e as consequentes dificuldades económicas no país afectaram, de forma negativa, a imagem do presidente. Além disso, notava as suas dificuldades em combater a corrupção e a influência dos oligarcas.

“Os funcionários são demitidos e contratados com frequência e por razões opacas, deixando as pessoas confusas sobre como o país está a ser administrado“, escrevia ainda a investigadora, referindo um aumento nas “preocupações com a pobreza”, com “um quarto da população a relatar piora nas finanças domésticas”.

Lutsevych sublinhava, igualmente, o falhanço de Zelenskyy em negociar um acordo de paz com a Rússia para a região do Donbass, como tinha prometido, mesmo tendo adoptado “uma retórica não-confrontacional com Putin, fazendo várias concessões”. Na verdade, ao contrário da paz, tudo se agravou.

Contudo, ainda havia a ideia de que Zelenskyy era a única alternativa – “é o que temos”, dizia uma ucraniana à Rádio NPR já em Janeiro deste ano.

Uma “coragem que é a face” de todos os ucranianos

No início deste ano, com a ideia da guerra mais perto, “mais da metade dos ucranianos” entrevistados pelo jornalista Daniel Estrin, o correspondente internacional da NPR a trabalhar então em Kiev, achava que “Zelenskyy não seria capaz de proteger a Ucrânia no caso de uma invasão russa em grande escala”.

Também era óbvio para muitos ucranianos que Putin queria “aproveitar os índices de aprovação mais baixos de Zelenskyy” para “enfraquecê-lo com essa ameaça de invasão”, de modo a “enfraquecer a liderança da Ucrânia”.

Mas o tiro saiu pela culatra a Putin e Zelenskyy está mais forte do que nunca, assumindo-se como o grande líder da Ucrânia, e como um exemplo de liderança para o mundo inteiro.

Por esta altura, a popularidade do presidente ucraniano rondará os 90% de acordo com a percepção do actor e realizador Sean Penn que conheceu Zelenskyy no dia anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia, durante filmagens para um documentário.

Sean Penn também se encontrou com Zelenskyy um dia depois da invasão e, em declarações à MSNBC, refere que ele “nasceu para isto”, para se “levantar desta forma extraordinária”.

“É o tipo de liderança a que aspiramos”, considera ainda o actor norte-americano, frisando que “é liberdade de pensamento e a verdadeira liderança que comove”.

O realizador também destaca a “ternura da sua humanidade” e nota que é “um exemplo vivo daquilo que queremos ser” e “defender”.

Durante a guerra na Ucrânia, Zelenskyy tem sido particularmente hábil na forma como tem gerido o lado mediático do conflito, com vídeos nas redes sociais e com um périplo por vários Parlamentos mundiais.

Nesta quinta-feira, vai intervir no Parlamento português e espera-se que volte a pedir mais armas e mais apoios para lutar contra Putin e o seu exército, como tem sido habitual.

“Muitos dos seus consultores próximos são pessoas do mundo do espectáculo que são adeptas da criação de realidades ficcionais”, sublinhava Orysia Lutsevych em Novembro de 2021. Nessa altura, este dado era um risco para o líder ucraniano que se podia ver influenciado a tomar decisões “como respostas a emoções públicas na busca por popularidade”, apontava a investigadora.

Mas aquilo que então poderia ser trágico para Zelenskyy, causando-lhe a derrota na busca por um segundo mandato, tornou-se na sua grande força. A sua mestria enquanto actor de um ideal maior, e da força maior da liberdade de todo um povo, pode ter sido o segredo para a resiliência face ao invasor. A sua “coragem” é, afinal, “a face de tantos ucranianos”, como frisa Sean Penn.

Susana Valente, ZAP //

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