/

A história está cheia de novas moedas que falharam. O que torna as cripto diferentes?

ZAP // UA; ulchik74 / Depositphotos

Continental dollar Vs. Bitcoin

A história mostra-nos que devemos desconfiar da ideia de que os sistemas monetários mudam sempre para melhor, e sugere-nos que o crescimento acelerado de uma moeda numa sociedade fraturada pode precipitar a sua autodestruição.

A confusão e a agitação em torno das criptomoedas fazem por vezes recordar o drama alemão Fausto, do século XIX.

Na obra-prima de Goethe, o diabo Mefistófeles oferece a um imperador a visão tentadora de uma riqueza sem limites através da impressão de papel-moeda.

O imperador agarra a ideia, inédita na época em que a peça se situa, e a riqueza mágica que o papel cria traz uma breve prosperidade ao seu atribulado domínio.

Mas o que parecia uma fonte inesgotável de valor depressa se revela ilusório. Uma combinação de mal-entendidos e entusiasmo desmedido conduz à corrupção económica e moral, e o império mergulha no caos.

É uma história que pode muito bem ter paralelos com as moedas digitais de hoje, diz Hiroki Shin, professor de História na Universidade de Birmingham, num artigo no The Conversation. Muitas pessoas utilizam-nas sem compreender totalmente como funcionam, por vezes com prejuízos financeiros.

E a história mostra-nos que devemos desconfiar da ideia de que os sistemas monetários mudam sempre para melhor, seguindo uma espécie de caminho evolutivo natural. Na realidade, novos sistemas monetários nem sempre vingam e, mesmo quando triunfam, a mudança de regime monetário pode ser longa e penosa.

Há mais de 2.000 anos, eram usadas moedas e fichas, que se mantiveram até ao século XIX, altura em que o papel acabou por dominar. Em vez de uma transição clara e irreversível de moedas para notas, os países alternaram frequentemente entre os dois sistemas.

Houve experiências falhadas com papel-moeda na China do século XIV, na Suécia do século XVII e na França do século XVIII, para citar apenas alguns exemplos. A investigação sobre estas tentativas problemáticas sugere que a divisão social torna as mudanças monetárias particularmente vulneráveis.

Durante a guerra da independência americana, por exemplo, surgiu em 1775 uma moeda, o “dólar continental, que foi rapidamente abandonada devido a má gestão e incompreensão. Mas também contribuiu para acentuar as tensões políticas entre os patriotas que a apoiavam e os lealistas à Coroa britânica, que a detestavam.

De forma semelhante, nas décadas de 1750 e 1760, o governo da Suécia emitiu papel-moeda não resgatável para pagar as suas dívidas de guerra. Mas a inflação extrema que se seguiu coincidiu com fortes divisões sociais e levou a um período de caos político.

Em 1789, no início da Revolução Francesa, foi emitido um título de dívida pública em papel que rapidamente perdeu valor. Sete anos depois, o “assignat” era praticamente inútil.

A Grã-Bretanha saiu-se ligeiramente melhor. A suspensão do padrão metálico em 1797, sob a pressão financeira da guerra anglo-francesa, não provocou o colapso da moeda em papel.

Mas o sistema assente no papel terminou em 1819, num ano de intensos conflitos de classe que culminaram no massacre de Peterloo, onde pelo menos 18 pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas pela cavalaria durante uma manifestação pacífica por reformas democráticas.

O público tinha passado a detestar as notas do Banco de Inglaterra, que se tornaram símbolo de depressão económica e opressão política. A Grã-Bretanha acabou então por seguir o padrão de outros países, regressando a um sistema monetário tradicional assente no valor sólido dos metais preciosos.

Estes casos de fracasso do papel-moeda — e há muitos mais — mostram que a aceitação generalizada de uma moeda exige, em última análise, valores partilhados e solidariedade social. O papel-moeda funciona quando existe confiança, quando as pessoas sabem que já foi aceite no passado e continuará a ser aceite no futuro.

Caso contrário, seria improvável que um simples pedaço de papel se tornasse um meio fiável de pagamento e reserva de valor. Uma vez perdidos esses valores comuns, inicia-se geralmente um ciclo descendente de desvalorização monetária.

O sucesso da criptomoeda

No século XXI, as criptomoedas desafiam a ideia convencional de dinheiro como algo dotado de valor — ou, pelo menos, associado a algo de valor, como o ouro. E como algo emitido e gerido por uma autoridade central de confiança.

As criptomoedas existem apenas no domínio da tecnologia blockchain. O seu valor é criado e mantido não por bancos centrais, mas por complexos algoritmos informáticos.

Para muitos, todos estes processos computacionais abstratos tornam as criptomoedas tão misteriosas quanto a magia negra de Mefistófeles em Fausto.

Ainda assim, com o forte apoio de Donald Trump, as criptomoedas vivem um momento de popularidade crescente. Esta tendência será, sem dúvida, reforçada por uma maior desregulação, que reduzirá as exigências de transparência e enfraquecerá as salvaguardas de proteção ao consumidor.

A subida de popularidade coincide com a aparente preferência do governo dos Estados Unidos em enfraquecer o dólar nos mercados internacionais como forma de impulsionar as exportações norte-americanas, tornando os seus produtos mais baratos no estrangeiro.

Estes acontecimentos podem conduzir a uma transformação profunda do sistema monetário à escala global. À medida que o dólar perde valor e as regras sobre cripto são suavizadas, países e investidores em todo o mundo podem sentir-se tentados a diversificar os seus ativos e aumentar as suas reservas em criptomoeda.

Mas a combinação de divisão social e a sua rápida expansão pode na verdade não ser um bom presságio para o futuro das criptomoedas.

Longe de se imporem como meio dominante de troca num novo regime descentralizado, a história sugere que o seu crescimento acelerado numa sociedade fraturada poderá, pelo contrário, precipitar a sua autodestruição.

ZAP //

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.