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“Mataram-nos por dentro”. Um ano depois da explosão em Beirute, os libaneses continuam sem respostas

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Nabil Mounzer / EPA

O cenário de destruição no porto de Beirute, no Líbano

Assinala-se hoje o primeiro aniversário da explosão do porto de Beirute, que causou 218 mortos. As famílias das vítimas não se conformam com o impasse na justiça e a falta de responsabilidades dos políticos.

Foi já há um ano que uma das maiores explosões não-nucleares da história chocou o mundo. A 4 de Agosto de 2020, o porto de Beirute e grande parte da cidade foram arrasados por uma explosão de 2,7 toneladas de nitrato de amónio que matou 218 pessoas e causou mais de 6500 feridos. Os prejuízos rondaram os 12.7 mil milhões de euros, mas os libaneses continuam sem ter respostas e a investigação não avança.

Na altura da explosão, foi confirmado que a carga de amónio de nitrato que ficou retida no porto tinha como destino uma empresa portuguesa baseada em Moçambique – a Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM) – e que era uma encomenda tinha sido feita em 2013 à empresa Savaro, da Geórgia. Como a carga tinha sido apreendida pelas autoridades de Beirute, a FEM recebeu outra remessa.

Segundo o que uma fonte da empresa revelou à Lusa pouco depois da explosão, aquela foi uma “encomenda normal” de uma matéria-prima utilizada na produção de explosivos e a FEM cumpriu “sempre de forma escrupulosa todos os requisitos legais”.

A empresa sublinhou que não tem “qualquer relação com armadores ou transitários” e que não tem responsabilidades sobre as encomendas até que estas lhe cheguem às mãos, já que “nunca paga qualquer carga antes de esta lhe ser entregue”.

O ex-director técnico da FEM, Jorge Moreira, abandonou a FEM em 2016. Enquanto trabalhou na empresa, visitou o porto de Beirute em 2014 para verificar a encomenda que devia ter chegado ao porto da Beira, em Moçambique. No início de 2021, as autoridades libanesas emitiram um mandado de captura através da Interpol e Jorge Moreira viu o seu nome associado a suspeitas de terrorismo e homicídio.

O caso foi entretanto arquivado e os libaneses aguardam pelas respostas de uma investigação que está num impasse. António Cunha Vaz, porta-voz da FEM, explica ao Observador que Jorge Moreira “tem a sua situação legal completamente resolvida” e que se apresentou voluntariamente para depor na Polícia Judiciária quando o Líbano emitiu o mandado de captura.

O porta-voz garante à mesma publicação que a FEM não foi contactada pelas autoridades libanesas e nem está a ser investigada, mas que “desde cedo informou que forneceria todos os documentos relacionados com o processo”.

Humans Rights Watch aponta responsáveis

Apesar do destino ser Moçambique, a verdade é que a carga estava em Beirute e os responsáveis do porto mantiveram uma substância perigosa e explosiva armazenada durante mais de seis anos sem qualquer protecção. Um ano depois, ainda não foram apuradas responsabilidades políticas pela explosão e a imunidade judicial dos políticos não foi levantada.

Um relatório da Organização Não-Governamental Human Rights Watch (HRW) intitulado “Mataram-nos por Dentro” que foi publicado esta semana aponta o dedo às “décadas de má gestão do governo e corrupção no porto de Beirute” e à “negligência e obstrucção à investigação” dos responsáveis.

O Presidente Michel Aoun; o primeiro-ministro demissionário Hassan Diab; os ex-ministros Ali Hassan Khalil, Ghazi Zeaitar e Yousseff Fenianos – das Finanças e das Obras Públicas e Transportes, respectivamente -; o chefe dos serviços do Estado, Tony Saliba, e o Director-Geral de Segurança, Abbas Ibrahim, todos sabiam que o nitrato de amónio estava no porto, segundo a HRW.

Ano após ano, nada foi feito para eliminar a ameaça“, começou Lama Fakih, na conferência de imprensa de apresentação do relatório. “As provas mostram esmagadoramente que a explosão de Agosto de 2020 no porto de Beirute foi causada pelas acções e omissões dos responsáveis principais libaneses que falharam na comunicação dos perigos do nitrato de amónio, e armazenaram o material em condições que sabiam ser inseguras”, acusa a directora da secção de crise e conflito da HRW.

A ONG relata também os “defeitos sistémicos dos procedimentos na investigação doméstica que tornaram-na incapaz de fazer justiça com credibilidade”. Estes defeitos incluem “uma falta de independência judicial, a imunidade dos políticos em altos cargos, falta de respeito pelos critérios de um julgamento justo e violações dos processos devidos”.

A Human Rights Watch pediu também às Nações Unidas que fizessem uma investigação independente e que fossem impostas sanções aos responsáveis libaneses devido à violação de direitos humanos que resultou da explosão e às tentativas de fugir às responsabilidades. Kenneth Roth, director-executivo da ONG, afirma que a comunidade internacional tem o dever de se envolver se a justiça libanesa continuar num impasse.

A verdade é que foram já nomeados dois juízes para liderar a investigação. Fadi Sawan foi o primeiro e avançou com um requerimento para levantar a imunidade judicial dos políticos, para que as figuras de Estado pudessem ser chamadas a depor. No entanto, o Parlamento libanês tem de aprovar esta decisão e chumbou-a.

O juiz foi afastado da investigação em Fevereiro quando acusou três ex-ministros e o primeiro-ministro cessante de negligência criminal. O seu sucessor, Tarek Bitar, também pediu que a imunidade fosse levantada, mas até agora isso ainda não aconteceu.

Famílias das vítimas exigem justiça

Na conferência de imprensa de apresentação do relatório da HRW, esteve também presente Paul Naggear, que tinha 37 anos e vivia em Beirute com a mulher, Tracy, e a filha Alexandra, de três anos. Alexandra acabou por ser uma das vítimas mortais da explosão, que matou pelo menos sete crianças, tendo a mais nova apenas cinco meses.

“Às 17h30 do dia 4 eu estava a trabalhar, em casa, e a Tracy estava com a nossa filha que brincava com um amigo. Era um dia bonito”, começa Paul. “Quando a Tracy e eu estávamos a levar a nossa filha pelas ruas destruídas de Gemmayzeh, e a ver pessoas no chão, a tentar chegar ao hospital mais próximo. Eu tive de carregar a minha filha a morrer numa acelera”, recorda Paul Naggear, citado pelo Público.

O pai de Alexandra relembra também os 40 minutos que passaram entre o início do incêndio no porto e a explosão e acredita que a filha poderia ter sobrevivo se as autoridades tivessem avisado a população do perigo logo que detectaram o incêndio. “Foram tão desumanos que passaram 40 minutos à espera que nós morrêssemos e nem se prepararam para nos ajudar a seguir?”, acusa.

“O que a HRW acaba de dizer é que todos eles já sabiam. Sabiam e mataram-nos na nossa casa. Quero tentar pôr-me no lugar de Michel Aoun. O que é que ele pensou naquele momento? Estava sentado em casa, ou no seu palácio, e liga a televisão e vê o fumo a sair do porto”, conta Paul.

O dia 4 de Agosto de 2020 começou também de forma banal para Samer Tibati, um sírio que vivia em Beirute. “A minha filha Bissan chegou perto de mim, disse que me amava, e pediu-me algum dinheiro. Depois comprou chocolate e deu-o a toda a gente que vivia na nossa rua”, revela à Al Jazeera.

Mais tarde, a explosão feriu gravemente a menina de sete anos. Tibati levou a filha de boleia para o hospital e demorou horas a conseguir assistência médica para Bissan. A criança acabou por não resistir aos ferimentos e morreu sete dias depois.

“Tenho um retrato dela na minha parede e olho para ela enquanto tomo café de manhã. E depois oiço a voz dela a dizer ‘Pai, ajuda-me, por favor’, mas não posso ajudá-la”, lembra Samer Tibati enquanto luta por segurar as lágrimas.

Tal como Tibati, muitas outras famílias das vítimas ainda lutam contra aquela que acreditam ser a impunidade dos responsáveis políticos. Tharwat Hoteit perdeu o irmão bombeiro na explosão e integra uma associação composta por familiares das vítimas.

“Tínhamos esperança que os juízes libaneses liderassem a investigação com integridade. O juiz Bitar provou a sua integridade, o problema é que não temos políticos honrosos“, revela à Al Jazeera.

Até agora, 25 pessoas foram detidas, a maioria eram trabalhadores com responsabilidades mais reduzidas no porto de Beirute. Treze já foram libertados, enquanto o director da alfândega, Badri Daher, e o director da autoridade portuária, Hasan Kraytem, ainda estão detidos.

Nos finais de Julho, pelo menos 50 deputados apoiaram uma moção para retirar a imunidade quatro ex-ministros – Ali Hasan Khalil, Ghazi Zeiter, Youssef Finianos e Nouhad Machnouk – para que pudessem ser julgados pelo Conselho Superior, um órgão que trata de destituições. Khalil, Zeiter, e Machnouk são actualmente deputados.

No entanto, as famílias das vítimas e os advogados consideraram esta proposta uma tentativa de proteger os ex-ministros do julgamento com o juiz Tarek Bitar, já que o Conselho Supremo é composto por deputados e nunca fez um julgamento criminal.

As famílias lutam por justiça e os políticos tentam escapar dela num conflito que não parece ter fim à vista, tudo isto enquanto o Líbano está há quase um ano sem um governo de pleno direito após a demissão de Hassan Diab devido à explosão.

AP, ZAP //

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