O Supremo Tribunal dos Estados Unidos vai anunciar hoje se revoga ou não a decisão de 1973, que permite o aborto legal a todas as americanas.
Em entrevista ao Diário de Notícias, o Presidente da República expressou a sua opinião sobre a legalização do aborto — que mudou ao longo dos anos.
“Não acredito que Portugal possa vir a recuar no aborto. Era preciso que as linhas radicais, religiosas, nessa matéria ganhassem um peso brutal. E não há hoje vozes favoráveis a uma revogação/reversão legislativa”.
“A sociedade portuguesa acabou por, de alguma maneira, deixar de considerar esta questão como uma questão de clivagem clara, doutrinária. É uma questão que existia nos anos 1980 e 1990; em 2007, como se viu pelo resultado do referendo, já existia menos, nomeadamente no país metropolitano, que domina largamente, populacionalmente, o antigo país rural”, acrescenta Marcelo Rebelo de Sousa.
“E hoje pode-se dizer que é uma não questão, é uma questão que pode existir na consciência de cada qual mas que não é na consciência coletiva uma questão fraturante. Deixou de existir como questão, é um facto”, garante.
Marcelo assume ser católico na biografia oficial do site da presidência e foi, ao longo da sua carreira, um dos principais adversários da legalização da interrupção da gravidez em Portugal.
A decisão foi atribuída as mulheres, em 1998, resultou de um acordo entre o atual presidente da República, então presidente do PSD, e o primeiro-ministro e líder do PS, António Guterres.
Marcelo rebelo de Sousa defendia que a lei aprovada em 1994 já assegurava as ocasiões em que era aceitável permitir o aborto — a gravidez resultante de violação, a malformação / deficiência grave do feto e o perigo de morte ou para a saúde física / psíquica da mulher.
Em 2007, concordou com o fim das penas de prisão para as mulheres, mas não com o a “liberalização”, considerando que a escolha do referendo se efetuava entre a “vida” e “uma livre escolha da mulher, por nenhuma causa justificativa”.
E concluiu, num vídeo de campanha que mais tarde foi objeto de uma famosa sátira dos Gato Fedorento: “Um incómodo momentâneo, uma mudança de residência, um estado de alma inconstante. Ninguém a convida [à mulher] sequer a refletir. Basta isso para decidir o destino daquela vida humana. Assim não.”
15 anos depois, o Presidente da República admite que os receios que tinha de que o aborto passasse a ser “uma alternativa ao planeamento familiar não se confirmaram.
“A prática acabou por mostrar que não houve uma interpretação muito radical da lei. Num primeiro momento houve um aumento muito significativo de abortos [legais], mas depois o número estabilizou. Nos últimos dados que vi, de 2019 há uma estabilização”, sublinha.
De acordo com o último relatório da Direção-Geral de Saúde (DGS), respeitante a 2018, verificou-se “um decréscimo consistente desde 2011”, com a média de interrupções de gravidez em Portugal “a manter-se abaixo da média europeia no que respeita ao indicador ‘número de IG por 1000 nados-vivos'”.
Ainda segundo o mesmo relatório, “foi escolhido um método de contraceção por 92,6% das mulheres que recorreram à IG, sendo 39,3% métodos de longa duração e 37,7% método hormonal oral ou injetável”.
A maior parte das mulheres que abortou em 2018 (69,8%) fê-lo pela primeira vez, e mais de metade (56,7%) das que o fizeram já tinham pelo menos um filho.
Quando questionado sobre se mantinha a mesma opinião de 2007, o PR admitiu que “era um problema de convicção pessoal”.
Na altura, “não exercia funções políticas — e era também uma análise coletiva que fazia. As razões que me levavam naquela altura a ter aquela opinião tinham a ver com o temor e a preocupação com uma visão radical machista, de compressão de um planeamento familiar”, justifica.
“Como Presidente, a análise coletiva que faço neste momento é de que este tema deixou de estar na ordem do dia das clivagens das políticas nacionais. Independentemente das convicções pessoais que a pessoa tenha; sempre disse que como Presidente nunca seria por convicções pessoais que promulgaria ou deixaria de promulgar diplomas, mas pela visão que teria sobre a consciência coletiva dominante”, garante Marcelo.
O Presidente da República considera que a possibilidade de estados nos EUA proibirem o aborto até em caso de violação é um “radicalismo”.
“Se vão para esse tipo de radicalismo precisam de um eleitorado muito muito radical em termos religiosos”, justifica.