O general António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República, considerou hoje que “quando se é obrigado” a exonerar um chefe militar devem ser apontadas as razões, para que a sua imagem e dignidade fiquem salvaguardadas.
“Não se despede um chefe de Estado-Maior e, quando se é obrigado a exonerá-lo, apontam-se razões que levam a isso para que a imagem dele, a dignidade dele, fiquem devidamente salvaguardadas”, salientou Ramalho Eanes, após questionado sobre a polémica em torno da intenção do Governo de propor a exoneração do atual Chefe do Estado-Maior da Armada.
Falando aos jornalistas depois de ter participado na sessão de homenagem ao general Loureiro dos Santos, que decorreu hoje no Instituto Universitário Militar, em Lisboa, o ex-presidente referiu-se às palavras expressas por Marcelo de Rebelo de Sousa sobre o assunto para afirmar que concorda e que o “Presidente da República já disse tudo”.
Questionado pelos jornalistas sobre se o Governo se precipitou ao querer substituir o atual chefe de Estado-Maior da Armada, almirante Mendes Calado, pelo vice-almirante Gouveia e Melo, Ramalho Eanes respondeu: “não queria tecer comentários sobre isso”.
Na semana passada, fontes ligadas à Defesa Nacional disseram à agência Lusa que o Governo decidiu propor ao Presidente da República a exoneração do chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Mendes Calado, que ocupa este cargo desde 2018, tendo sido reconduzido para mais dois anos de mandato com início em março deste ano.
A agência Lusa noticiou também que o vice-almirante Gouveia e Melo, que coordenou a equipa responsável pelo plano de vacinação nacional contra a covid-19, é o nome que o Governo tenciona propor para substituir o atual chefe do Estado-Maior da Armada.
Na sequência destas notícias, na quarta-feira, após uma visita à Casa do Artista, em Lisboa, o Presidente da República afastou uma saída imediata do atual chefe do Estado-Maior da Armada, referindo que está acertado que o almirante António Mendes Calado deixará o cargo antes do fim do mandato, mas que isso não acontecerá agora.
Sem adiantar uma data para essa saída, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que António Mendes Calado mostrou “lealdade institucional” no exercício do cargo e realçou que nesta matéria “a palavra final é do Presidente da República”.
O chefe de Estado lamentou ver o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo envolvido em notícias sobre a substituição do chefe do Estado-Maior da Armada, numa situação que no seu entender pode parecer “de atropelamento de pessoas ou de instituições”.
Na quarta-feira à noite, o Presidente da República recebeu no Palácio de Belém, em Lisboa, o primeiro-ministro, António Costa, a pedido deste, acompanhado pelo ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, sobre a chefia do Estado-Maior da Armada.
No final desse encontro, foi divulgada no sítio oficial da Presidência da República na Internet uma nota na qual se considera que “ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a propósito da chefia do Estado-Maior da Armada”.
Nos termos da lei orgânica das Forças Armadas, os chefes dos ramos são nomeados e exonerados pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, que deve ser precedida da audição, através do ministro da Defesa Nacional, do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
Governamentalização que ameaça “cerne espiritual das Forças Armadas”
O general Ramalho Eanes advertiu hoje para a governamentalização, “que se tem acelerado e intensificado”, das Forças Armadas, considerando que ameaça “o cerne espiritual” da instituição militar e a “lealdade de todos os militares” à ética das FA.
“A verdade é que a governamentalização e a ameaça decorrente, até de partidarização, que, ultimamente, se tem acelerado e intensificado, ameaçam, mesmo, o cerne espiritual das Forças Armadas, a lealdade de todos os militares à ética das Forças Armadas (hierarquia, unidade e disciplina) e a fidelidade incondicional à democracia e à nação”, declarou o ex-Presidente da República.
Ramalho Eanes discursava numa sessão de homenagem ao general Loureiro dos Santos – antigo ministro da Defesa e ex-Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), que morreu em 2018 – no Instituto Universitário Militar (IUM), em Lisboa.
Para o antigo Presidente da República, “não será exagero temer que alguns militares, ambiciosos, e de poucos escrúpulos, procurem ligações pessoais de dependência partidária na esperança de, assim, mais facilmente conseguirem lugares e promoções (situação a que já assistimos no PREC [Processo Revolucionário em Curso] e cuja resolução bem difícil e onerosa foi)”.
Questionado pelos jornalistas no final da sessão sobre a ameaça de partidarização de que falou no seu discurso, Ramalho Eanes admitiu temer que o país esteja “em perigo de cair numa situação dessas”.
“Eu temo que estejamos em perigo de cair numa situação dessas. Não digo que haja um interesse deliberado em fazer isso, agora, em parte, ter este perigo em atenção, esta vulnerabilidade em consideração, e adotar todas as medidas que impeçam que isso venha a acontecer, porque a partir daí, se ele viesse a acontecer, não era mau para os militares, era extremamente prejudicial para a democracia e para o futuro do país”, acrescentou.
No seu discurso, Eanes expressou ainda algumas das suas preocupações “perante a crescente falta de vitalidade do virtuoso equilíbrio que deve existir entre a instituição militar e o poder político democrático”, quanto “ao moral institucional dos cidadãos-militares” e ainda quanto “ao entendimento que não existe, mas deveria existir, entre o poder político e as Forças Armadas em todas as situações e missões, seja no exterior ou no país”.
O general fez ainda uma breve referência “à chamada Reforma do Comando Superior das Forças Armadas”, aprovada este ano e que reforça, no essencial, o poder operacional no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) – que foi criticada por Ramalho Eanes, entre outros ex-chefes militares.
Sobre este tópico, Eanes citou “um camarada ilustre”, o Vice-Almirante Reis Rodrigues, que escreveu um artigo de opinião na Revista Militar, em julho deste ano.
“Com a solução pretendida pelo MDN [ministro da Defesa Nacional] vêm, por arrastamento, alguns erros preocupantes. Não incluem, na minha opinião (…), qualquer desacordo quanto à autoridade [operacional] inerente ao estatuto do CEMGFA. Mas abrangem, sem margem para dúvidas, as maiores reservas quanto ao seu alargamento a áreas em que o seu envolvimento é contraproducente ou gerador de novos tipos de tensões”, citou.
Eanes apontou ainda que “num mundo cada vez mais atribulado, com acrescidas vulnerabilidades e bem sérias ameaças” os militares são hoje, “como diz António Barreto, os “defensores da liberdade” , os defensores de primeira linha no combate pelas liberdades de que o nosso país e o mundo democrático não podem abdicar e prescindir”.
“Na busca da valorização e de uma mais saudável inserção das Forças Armadas na sociedade e na nação, de que todos somos parte, penso que seria importante relevar os princípios e os valores que nortearam a carreira militar do General Loureiro dos Santos. Esta seria, seguramente, a melhor forma de homenagear a sua memória”, concluiu.
Nascido em Vilela do Douro, concelho de Sabrosa, no distrito de Vila Real, em 02 de setembro de 1936, José Alberto Loureiro dos Santos foi ministro da Defesa Nacional entre 1978 e 1980 nos IV e V Governos Constitucionais, chefiados por Carlos Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintassilgo, ambos executivos de iniciativa presidencial de Ramalho Eanes.
Militar do ramo de artilharia, Loureiro dos Santos foi vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, em 1977, e Chefe do Estado-Maior do Exército.
Morreu em 2018, aos 82 anos, em Lisboa, vítima de doença.
Poder político “não soube, ou não quis” fazer reforma estrutural das Forças Armadas
O general e ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, considerou hoje que a “indispensável e inadiável reforma das Forças Armadas não teve lugar”, apontando que o poder político ao longo do tempo “não soube, ou não quis” fazê-la.
Ramalho Eanes falava numa sessão de homenagem ao general Loureiro dos Santos – antigo ministro da Defesa e ex-Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), que morreu em 2018 – no Instituto Universitário Militar (IUM), em Lisboa.
Num longo discurso, de cerca de meia hora, o general, que ocupou também o cargo de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) entre 1976 e 1981, apontou que “tal como aconteceu antes de Loureiro dos Santos, aconteceu com ele, e aconteceria, depois, com todos os Chefes de Estado-Maior do Exército: a reforma das Forças Armadas, a verdadeira e necessária reforma, não aconteceu”.
“Creio que se poderá concluir, com incompreensão e mágoa, que a indispensável e inadiável reforma das Forças Armadas não teve lugar. Não se conseguiu obter ‘equilíbrio entre o número de pessoal a manter na instituição, o grau de satisfação individual e a obtenção de capacidades militares ao mais baixo custo’”, considerou, verificando-se uma redução constante de efetivos ou a delimitação das capacidades militares ao essencial.
E para o general, “a responsabilidade de tão gravosa quão prejudicial situação se não deve às Forças Armadas, às suas chefias”.
“A responsabilidade caberá, sim, ao poder político que, apesar das suas múltiplas iniciativas, reformas, definições do Conceito Estratégico Militar, Leis de Programação Militar, entre outras, não soube, ou não quis, fazer a reforma estrutural das Forças Armadas”, vincou.
No seu discurso, Eanes salientou ainda que atuação do Exército em forças multilaterais, “de reconhecida qualidade”, só discretamente têm chegado à opinião pública, mas as “poucas notícias que chegam têm, no entanto, sido suficientes para a credibilização popular do Exército, para que os portugueses, em geral, sintam quão necessário ele é para a imagem internacional do país e para a defesa dos interesses permanentes da nação”, perceção “e sentimento que não são, contudo, partilhados pela classe política”.
Questionando porque é que “não foi possível, com militares de reconhecida excelência, construir um Exército competente, prestigiado, moderno, capaz de responder às necessidades reais do país”, Eanes apontou para a “tensão entre placas tectónicas” do mundo político e militar.
“Resposta haverá nesta tensão entre “placas tectónicas” – a política e a militar institucional. Pergunta-se, por vezes, se não releva, ela, da incompreensão política da exigência de uma organização tão complexa quanto são as Forças Armadas”, sublinhou, acrescentando que “nunca o poder político reconheceu esta complexidade e nunca soube responder-lhe”.
Neste contexto, para Ramalho Eanes, é imperativo “referir que, pelo menos, uma parte do Exército tem o sentimento de que existe uma certa animosidade política relativamente às Forças Armadas e ao Exército, em especial”.
“Animosidade, essa, que, a existir, se não percebe, até porque as Forças Armadas e o Exército, em particular, tiveram papel de determinante importância no 25 de Abril e no 25 de Novembro, na legislação atinente à subordinação das Forças Armadas ao poder político legítimo (…), no abandono voluntário da sua ação politica (2º Pacto MFA-Partidos Políticos), em que ficou estabelecido o fim do Conselho da Revolução, a extinção da tutela político-militar, por iniciativa dos militares”, lembrou.
// Lusa