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Pare de desinfetar as compras e concentre-se nos grandes riscos, dizem especialistas em transmissão dos coronavírus

Apesar de o novo coronavírus poder ser detetado em objetos contaminados após dias, surgiu um consenso entre os cientistas de que o vírus raramente é transmitido através do contacto com superfícies contaminadas – sendo até seguro deixar de tomar medidas tão extremas como colocar as encomendas de quarentena ou limpar as compras do supermercado com desinfetante.

Essa recomendação aparece no seguimento da atualização do site do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, que acrescentou uma secção – chamada “Como se espalha a covid-19” – para esclarecer que “a propagação a partir de superfícies de contacto não é considerada uma forma comum” de transmissão do vírus.

“Tanto quanto sei, na vida real, cientistas como eu – epidemiologista e médico – e virologistas não se preocupam muito com essas coisas”, disse David Morens, conselheiro de Anthony Fauci, diretor do instituto americano de Alergia e Doenças Infeciosas, citado pelo The Washington Post.

Embora muitos estudos possam soar alarmantes, Morens disse que as pessoas não se devem preocupar, visto que tais investigações “tendem a mostrar que, em condições experimentais, que não são condições do mundo real, se consegue fazer com que o vírus persista e detetar essa persistência”.

No entanto, explicou, isso não significa que o vírus possa infetar qualquer pessoa. “A quantidade de vírus que pode persistir pode não ser a quantidade de vírus que o pode afetar num ambiente do mundo real”, explicou, referindo-se ao facto de existirem fatores como o fluxo de ar, a luz do sol e o calor, que atuam rapidamente para o enfraquecer.

Stefan Baral, professor associado no Departamento de Epidemiologia da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, disse que existe uma grande diferença entre uma única partícula viral ser capaz de sobreviver numa determinada superfície e a capacidade que um vírus tem de entrar numa membrana mucosa, atravessa-la e ter sucesso a infetar alguém. “É extremamente improvável que uma única partícula viral possa provocar consequências graves”, disse.

No entanto, a confusão sobre o novo coronavírus e as superfícies é compreensível, disse Angela Rasmussen, virologista do Centro de Infeção e Imunidade da Escola de Saúde Pública da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. “Os cientistas não têm feito um bom trabalho a explicar como se obtêm provas para os diferentes tipos ou diferentes vias de transmissão”, afirmou.

Rasmussen disse ainda que os epidemiologistas podem ter dificuldade em encontrar evidências reais da transmissão do vírus através de objetos ou superfícies contaminados, que são chamados de fómites.

No caso do novo coronavírus, isto deve-se em parte ao facto de a transmissão ocorrer frequentemente no contexto de grandes eventos, deixando os investigadores com dificuldades em determinar quem falou com quem e quem tocou em que superfície. “Não é invulgar não ter fortes provas epidemiológicas de transmissão de fómites”, explicou, “mas isso não significa que a transmissão não aconteça“.

Na verdade, acrescentou Rasmussen, por sabermos que outros vírus respiratórios transmitidos por inalação, como a gripe e o rinovírus, também são transmitidos por fómites, é provável que o novo coronavírus também o seja. Mas “pode ser que esse não seja o modo de transmissão dominante”, disse. E, embora possa ser importante para os investigadores determinar por quanto tempo o vírus permanece infecioso em ambientes diferentes, quando se trata da vida quotidiana, Angela Rasmussen sublinhou: “Não acho que seja necessariamente sensato limpar as compras.”

David Morens concorda: “Há muita preocupação desnecessária com estas coisas.” “É como estar no meio de uma auto-estrada movimentada com tráfego em redor e questionar: ‘Qual é a hipótese de eu ser atingido por um meteorito?’ Há uma hipótese, mas é bastante baixa, não tem outras coisas melhores com que se preocupar?”, explicou.

Embora nenhum ambiente possa ser determinado como totalmente seguro, o conselheiro de Fauci diz que precisamos de pensar nas ações como sendo de baixo, médio ou alto risco. O momento para se preocupar com superfícies contaminadas deverá ser num local com um número elevado de pessoas, todas a tocar nas mesmas superfícies.

Uma área que representa um risco elevado, de acordo com Morens, será uma casa de banho pública, onde, possivelmente, pessoas contaminadas possam ter tocado na maçaneta da porta, no interruptor da luz e na torneira. É uma situação em que se deve estar alerta, por exemplo, se ao lavar as mãos tocar novamente na torneira ou maçaneta da porta. Assim, de facto, pode acabar por se contaminar.

A proteção não se ganha lavando tudo, “são os comportamentos que se adotam para nos certificarmos que nada do ambiente, incluindo as próprias mãos, entra na boca, nariz ou olhos”, disse.

Esses comportamentos incluem nunca tocar em zonas acima do pescoço, usar máscara (o que também ajuda a lembrar que é fundamental não tocar no rosto), distanciamento social e higiene das mãos. Nesse caso, poderia até entrar num restaurante e tocar nos objetos — a cadeira, o menu — sem os limpar primeiro. E “se a última coisa em que toca é sabão e água ou desinfetante, está bem”, explicou Morens.

Stefan Baral, que tem insistido na reabertura dos parques infantis nos EUA, disse que um dos fatores que considera ao decidir se uma situação é de alto risco é o ambiente em que o vírus se pode encontrar. “Estes vírus não sobrevivem bem ao ar livre”, disse. O coronavírus gosta de estar rodeado de fluidos para o proteger, e os fluidos evaporam-se rapidamente no exterior — deixando o vírus vulnerável aos elementos.

No entanto, Baral não pensa da mesma forma em relação a espaços fechados, visto que podem existir ambientes interiores onde o vírus “se dá bem” e vive nas superfícies. Por esse motivo, as pessoas devem lavar imediatamente as suas mãos assim que entram em casas vindas do exterior e desinfetar frequentemente superfícies comuns, tais como maçanetas de porta e torneiras.

Mas será que todos os desinfetantes utilizados para limpar as mãos e superfícies poderão estar a abrir caminho para vírus mais resistentes? Não, se estiver a usar sabão e água ou os produtos recomendados pela Organização Mundial de Saúde, à base de álcool ou de lixívia — e não aqueles rotulados como antibacterianos, indicou Rasmussen. Os produtos antibacterianos são os que podem encorajar o desenvolvimento de micróbios resistentes — e não matam os vírus.

Sabão e água, álcool e lixívia, por outro lado, funcionam positivamente e matam muitas bactérias e vírus, referiu a virologista. Segundo Rasmussen, não há necessidade de ter produtos de limpeza antibacterianos em casa. “É lamentável que durante algum tempo tenham sido populares no mercado de consumo”, disse. “Pode usar sabão e outros tipos de desinfetantes que são mais gerais e que não estimulam a resistência.”

Para a virologista, é importante lembrar que “os vírus precisam de ter um hospedeiro e não se podem replicar sem um. Portanto, o principal local que será a fonte de vírus em casa de qualquer pessoa serão as pessoas que nela vivem e não as superfícies ou o ambiente físico.”

“Mesmo que haja vírus em certas coisas”, explicou, “esse risco pode realmente ser mitigado ao lavar as mãos”.

ZAP //

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