Porque é que a letra de médico é tão difícil de ler? A neurociência por trás da caligrafia

A nossa caligrafia nasce de um grande conjunto de fatores, desde as características genéticas que herdamos até à influência dos pais e professores.

As décadas de receitas escritas à mão no consultório criaram uma fama que virou até expressão popular: letra de médico.

Os garranchos de muitos profissionais de saúde são tão indecifráveis que até motivaram a criação de leis em diversos Estados do Brasil para exigir receitas digitadas no computador — ou, pelo menos, numa caligrafia legível e sem abreviações.

Mas o que explica o formato da nossa letra? E porque é que algumas pessoas têm uma caligrafia tão perfeita, enquanto outras parecem ser incapazes de escrever de uma maneira minimamente legível para os outros?

A antropóloga Monika Saini, professora do Departamento de Ciências Sociais do Instituto Nacional de Saúde e Bem-Estar da Família da Índia, lembra que escrever à mão exige muita coordenação entre os olhos e nossas habilidades motoras.

“Eu diria que a escrita é uma das mais complicadas habilidades desenvolvidas pelo ser humano”, diz a especialista ao programa de rádio CrowdScience, do Serviço Mundial da BBC.

O principal interesse académico de Saini é entender os diferentes fatores que tornam a letra de cada um de nós única.

“A escrita depende de utensílios e das nossas mãos. E, quando pensamos nas mãos, falamos de algo muito delicado, composto de 27 ossos, que são controlados por mais de 40 músculos, a maioria deles localizados no braço e conectados com os dedos através de uma intrincada rede de tendões”, detalha.

Isso significa que a nossa caligrafia é influenciada em parte pela anatomia e pelas características genéticas que herdamos dos nossos progenitores.

Ou seja: a altura, a forma como se senta, o ângulo do caderno ou do papel, a firmeza da sua mão, ser destro ou canhoto… Tudo isso influencia no formato das letras e das palavras que você produz.

Mas há também uma influência cultural que não pode ser ignorada aqui. Afinal, aprendemos a segurar lápis e canetas em casa, na primeira infância, com o auxílio dos mais velhos.

A forma em que eles costumam usar esses utensílios é passada adiante, quando a criança faz os seus primeiros traços.

Logo depois vem a escola — e uma nova onda de influências dos professores e dos colegas de sala de aula.

Com o passar dos anos, a tendência é que a nossa letra continue a mudar. Até porque, após os anos de formação e aprendizagem, muitos de nós passamos a escrever menos no dia a dia.

E a falta de hábito, somada à pressa do quotidiano, pode deixar-nos menos cuidadosos com a forma que traçamos letras, sílabas, palavras, frases, parágrafos…

Também não dá pra ignorar aqui o papel das novas tecnologias, que nos fazem digitar mais do que escrever à mão.

Numa de suas pesquisas, Saini quis entender melhor quais eram os fatores mais importantes por trás da caligrafia de um indivíduo.

Para isso, elaborou um texto simples, sobre mudanças climáticas, e pediu que um grupo de voluntários copiasse as frases, usando o estilo de escrita manual ao qual estavam acostumados.

Ao receber os manuscritos, a antropóloga pode avaliar elementos como o tamanho da letra, o formato de cada símbolo, o espaço entre as palavras ou o quanto a pessoa conseguia seguir linhas retas nos parágrafos.

“Com auxílio de programas de reconhecimento de imagens, foi possível comparar as escritas com o padrão que eu tinha partilhado anteriormente”, informa. “Quando o pai ensina as habilidades de escrita para o seu filho, existe uma alta probabilidade de encontrarmos alguma similaridade entre as duas caligrafias.”

“Mas a letra de uma pessoa também é influenciada pelo tempo de escola ou pelo estilo de um professor em particular”, pontua a investigadora.

O cérebro durante a escrita

A neurocientista Marieke Longcamp, da Universidade de Aix-Marselha, na França, estuda como somos capazes de escrever.

Para isso, usa aparelhos de ressonância magnética, que permitem visualizar em tempo real o cérebro de pessoas enquanto elas realizam certas atividades.

Numa dessas pesquisas, voluntários receberam um tablet capaz de gravar os movimentos da escrita à mão enquanto eram examinados.

Longcamp relata que foi possível observar a ativação de diversas partes do cérebro, que trabalham juntas para possibilitar o complexo ato de escrever.

“Regiões como o córtex pré-motor, o córtex motor primário e córtex parietal estão envolvidas no planeamento e no controle de gestos manuais”, detalha, ao CrowdScience.

“Há também influências de estruturas da base do cérebro, como o giro frontal, que está envolvido em aspetos da linguagem, e o giro fusiforme, que processa a linguagem escrita.”

“Uma outra estrutura fundamental aqui é o cerebelo, que coordena os movimentos e corrige nossos gestos”, complementa.

A neurocientista lembra que a caligrafia depende basicamente de dois sentidos: a visão e a propriocepção.

“A propriocepção leva em conta as informações que vêm dos músculos, da pele e do corpo todo. Isso tudo é codificado enquanto nós escrevemos”, explica.

É possível melhorar a sua letra?

Mas esse debate todo nos leva à discussão do início da reportagem: será que autores com letra feia podem ter uma letra melhor, para melhorar a legibilidade e aprender melhor?

No programa CrowdScience, a instrutora de caligrafia Cherrell Avery, de Londres, no Reino Unido, partilhou algumas dicas que podem ajudar.

A primeira orientação dela é “ir devagar“. Muitas vezes, escrevemos com muita pressa — e deixamos de prestar atenção ao formato adequado das letras e das palavras.

Avery também pontua que é preciso entender o estilo de cada pessoa, até para saber qual o melhor utensílio de escrita, a forma de segurar a caneta/lápis, a postura adequada, o tipo de papel, entre outros fatores.

Segundo ela, é possível, sim, melhorar a caligrafia através de exercícios.

“É claro que uma única sessão de treino não é suficiente para obter mudanças significativas”, pondera.

Mas com um pouco de insistência, é possível criar uma “memória muscular” que propicia um novo estilo de escrita.

“No início, isso é um esforço consciente. Mas, aos poucos, torna-se um hábito e nem se pensa mais sobre essa nova forma de escrever”, garante.

Por fim, Avery destaca que a escrita à mão ainda é importante para nós porque ela representa uma “extensão da nossa personalidade“.

“É como se deixássemos um pouco de nós mesmos naquela página.”

ZAP // BBC

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