Jornalista deixa a Rússia, tal como a Rússia deixou “o jornalismo de verdade”

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Kira Yarmysh / Twitter

Maria Ovsyannikova na televisão estatal russa, Canal 1

No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a Rússia tem as redes sociais bloqueadas, o acesso à internet condicionado e os canais de informação na mão do Governo.

Ariuna Bogdan, jornalista e professora russa, confirma que a Moscovo só chega “a informação que tem de chegar”.

A jornalista russa, já vive há cinco anos em Portugal. Quando a guerra começou, a 24 de fevereiro, despediu-se do cargo de correspondente da Rádio Culture, em Moscovo, onde trabalhou durante 17 anos.

Ariuna Bogdan trabalhava, principalmente, com a área do cinema e com a rádio cultural em Moscovo, na Rússia.

“No dia 24 de fevereiro, quando aconteceu tudo o que aconteceu, eu enviei a carta de despedida para os meus patrões”, contou Bogdan à Renascença.

Quando a jornalista fala em “tudo o que aconteceu”, está a referir-se à invasão da Ucrânia, ordenada pelo Presidente russo, Vladimir Putin.

Ariuna Bogdan está casada com um português há oito anos, e não pretende deixar o país que a acolheu, apesar de admitir que não consegue “trabalhar como jornalista em Portugal”. E, por isso, decidiu dedicar-se ao ensino de Português.

A jornalista russa candidatou-se a uma posição como professora de refugiados ucranianos, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa. Desde 26 de abril, tem sido a docente responsável.

Ariuna Bogdan abandonou a Rússia tal como, sublinha a docente, a Rússia abandonou o “jornalismo da verdade”.

“Toda a imprensa que dizia a verdade ou escrevia a verdade, ou os canais de televisão que faziam as reportagens verdadeiras, estão proibidas. Está tudo fechado. Não existem”, lamenta Bogdan.

Ariuna explica que tem colegas jornalistas que ainda resistem e não deixam a Rússia. Mas as condições de trabalho no país liderado por Vladimir Putin não estão fáceis, e a liberdade de imprensa está em vias de extinção.

Após o início da guerra, Moscovo aprovou uma nova lei de “extremismo”, que prevê penas até 15 anos de prisão para quem publicar notícias consideradas falsas pelo regime de Putin. A comunicação social está obrigada a divulgar apenas a versão oficial do Kremlin sobre a invasão da Ucrânia.

Todos os meios de comunicação russos estão proibidos de usar as palavras “guerra”, “invasão” ou “agressão”, para se referir à “operação militar especial” que está a decorrer na Ucrânia, de acordo com o Kremlin.

As autoridades russas conseguiram encerrar os três últimos meios de comunicação independentes do país: o jornal Novaya Gazeta (que se instalou fora do país), a rádio Eco de Moscou e o canal de televisão Dozhd.

O Nobel da Paz Dmitry Muratov, diretor do Novaya Gazeta, foi recentemente atacado com tinta vermelha, durante uma viagem na Rússia, em sinal de intimidação.

Nos últimos anos, vários jornalistas independentes foram mortos e a oposição foi extinta, como é o caso de Alexei Navalni, que se encontra detido numa prisão russa.

Ariuna Bogdan sublinha que apenas consulta os canais russos através do serviço de mensagens encriptadas Telegram.

“Eu só consigo ler os canais num Telegram, mas só aqueles que dizem a verdade, os outros eu nem tenho interesse porque sei o que é que eles vão dizer, e sei que é mentira”, realça.

A docente explica como funcionava a produção informativa na Rússia, antes da guerra na Ucrânia, e o que mudou com a “operação especial”.

“Nós sempre tivemos as nossas agências noticiosas como, por exemplo, a Lusa em Portugal. Essas agências partilhavam várias informações e, aquelas informações eram muito complexas e, digamos assim, não tinham só um ponto de vista”, conta.

“Qualquer pessoa que trabalha nas notícias tem que passar a informação, mas não deixar o seu lado pessoal naquelas notícias. Mas agora só fica um ponto de vista sem se conhecer o outro. A informação já não chega toda, só aquela que tem que chegar”, acrescenta Ariuna.

A antiga jornalista russa alerta ainda que, agora, apenas chega ao povo russo a informação desejada pelo regime de Vladimir Putin.

Relativamente à informação falsa que circula na Rússia sobre o motivo da guerra e o que acontece verdadeiramente na Ucrânia, Ariuna culpa o Governo de Putin e os responsáveis, mas não os seus colegas jornalistas.

“Quero defender as pessoas que ainda estão na Rússia. Eu tenho muitos amigos que nem conseguem sair ou não querem sair, ou não podem sair, mas que estão contra aquilo que se chama ‘operação especial’. Eles vão lá, eles vão protestar e eles fazem as suas manifestações. Eles ficam presos e perdem o seu trabalho. Eu tenho muito respeito por eles”, sublinha.

O povo russo tem cada vez mais dificuldade de aceder a informação independente. O Facebook e as restantes redes sociais da Meta estão bloqueadas pelo Governo, os canais internacionais foram expulsos e a internet tem um acesso condicionado.

“O Governo bloqueou as redes sociais como o Facebook, o Instagram e tudo o que é Meta. As pessoas que conseguem pagar VPN [rede de comunicações privada] conseguem ler e ver tudo, mas aquelas que não conseguem pagar VPN não. Também, nem sempre é possível, porque para pagar VPN temos que usar o sistema Swift que já não funciona”, relata Ariuna.

A professora de Português indica que são “muito poucas as pessoas que têm conhecimento da realidade” do que se está a passar na Ucrânia, visto que não têm acesso a informação do exterior.

“Jornalismo na Era Digital”

O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, proclamado pela ONU em 1993, é assinalado esta terça-feira sob o lema “Jornalismo na Era Digital”, para se refletir sobre o impacto do digital na liberdade de expressão, segurança dos jornalistas, acesso à informação e privacidade.

Para discutir este desafio e outros, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em parceria com o governo do Uruguai, promove até quinta-feira uma conferência mundial.

Ainda dentro da ONU, mas em Genebra, na Suíça, está prevista uma sessão especial com a participação da Alta-Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, e dos laureados com o Nobel da Paz 2021, a jornalista filipina Maria Ressa e o jornalista russo Dmitry Muratov.

Num momento em que se trava uma guerra na Europa, o papel da imprensa e dos jornalistas que estão a cobrir o conflito na Ucrânia também está em destaque neste Dia Mundial.

Na segunda-feira, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, destacou o papel crucial dos jornalistas que cobrem a guerra na Ucrânia, e acusou a Rússia de tentar “impedir o mundo de ouvir a verdade” ao “deter, sequestrar e visar” repórteres.

Segundo Borrell, que referiu que a segurança dos jornalistas “é uma prioridade da União Europeia”, os profissionais da comunicação social “desempenham um papel crucial” para assegurar que graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional “não fiquem impunes”.

Lembrou ainda que já foram mortos 10 trabalhadores ucranianos e internacionais de meios de comunicação social desde que a Rússia lançou, a 24 de fevereiro, a ofensiva militar na Ucrânia.

Alice Carqueja, ZAP //

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