/

Menino escravizado de 12 anos está na origem de uma doce indústria multimilionária

Racool_studio / Freepik

Uma flor deVanilla planifolia e um pau de baunilha

Edmond, um rapaz escravizado de 12 anos que viveu em França há 180 anos, é a razão pela qual comemos baunilha. Do México à Europa, o fascinante percurso do fruto da orquídea.

A história da baunilha, tal como na maioria das culturas verdadeiramente internacionais, atravessa o mundo.

Apesar de Madagáscar dominar hoje o seu comércio global, teve origem nas florestas do México e da América Central, quando uma orquídea desenvolveu o sabor distinto que hoje conhecemos tão bem.

O que talvez seja mais interessante sobre a baunilha é o facto de que a sua indústria multimilionária existe por causa de um rapaz escravizado, de 12 anos, que viveu há 180 anos numa remota ilha do Oceano Índico.

Mas para lá chegar, a orquídea, cujos frutos contêm a essência doce de baunilha fez uma viagem impensável.

A sua história começa no México, onde os totonacas, povo indígena que se estabeleceu por volta de 600 d.C. na costa atlântica, sentiu o cheiro proveniente da flor pela primeira vez.

“Os totonacas colhiam as vagens da natureza e não tinham um sistema de cultivo organizado”, explica Rebecca Menchaca García, que gere o Jardim de Orquídeas no Centro de Investigação Tropical da Universidade Veracruz, no México, onde vive o povo indígena.

“Era tão escasso e valorizado que os astecas exigiam-na como um imposto depois de conquistarem a civilização Totonac, no final de 1400″.

Os astecas usavam a baunilha para dar sabor ao xocoatl, a bebida que produziam a partir de cacau e outras especiarias — como pimenta —, reservada à nobreza ou a ocasiões especiais. Foi essa preciosa bebida que o imperador Moctezuma Xocoyotzin ofereceu a Hernán Cortés e ao seu grupo de espanhóis quando chegaram à sua capital, Tenochtitlan, em 1519.

Europeus gostaram do poderoso afrodisíaco

Durante as primeiras décadas de conquista, os espanhóis levaram dezenas de frutas, vegetais e outras culturas — incluindo baunilha — para cultivá-las e exibi-las do outro lado do Atlântico.

A baunilha e o cacau sempre viajaram juntos“, diz o especialista em orquídeas Adam Karrenmans, professor da Universidade da Costa Rica e diretor do Jardim Botânico de Lankester, um dos principais centros de investigação de orquídeas, com sede na Costa Rica.

Os europeus gostaram da bebida cremosa e ela espalhou-se, chegando à França pela Espanha no início de 1600, após o casamento entre Luís XIII e Ana da Áustria, filha do rei espanhol.

Uma vez do outro lado do Atlântico, a baunilha fez o seu próprio caminho. Perto do final do seu reinado, em 1602, o médico da rainha Isabel começou a adicionar a especiaria aos pratos da monarca, pois acreditava ser um poderoso afrodisíaco, escreve Rosa Abreu-Junkel em Vanilla: A Global History.

Do outro lado do Canal da Mancha, a poderosa Madame de Pompadour adicionou baunilha à dieta quando tentou atrair de volta o seu amante, o rei Luís XV da França, por volta de 1750.

A baunilha tinha, assim, entrado no comércio global de especiarias que redesenhava fronteiras e mudava economias em todo o mundo, com as potências coloniais europeias a lutar para garantir as suas vagens.

Polinizador exclusivo estragou os planos

Chefs experimentavam-na em sobremesas, fabricantes produziam novos perfumes com ela e os aristocratas só queriam exibir-se — mas a produção global de baunilha estava estrangulada na mesma faixa de terra costeira nas Américas, onde prosperou por séculos.

Outras potências coloniais começaram a explorar a ideia de cultivar baunilha fora das colónias espanholas, escreveu Tim Ecott em Vanilla: Travels in Search of the Luscious Substance.

Os britânicos na Índia, os franceses nas colónias do Oceano Índico, os holandeses em Java e até os espanhóis nas Filipinas tentaram plantá-la nos anos 1600 e 1700, mas ninguém teve sucesso.

“Sempre que os europeus pegavam nas plantas e as plantavam noutras das suas colónias, descobriam que elas podiam crescer e florescer lá, mas nunca produziam frutos”, disse o especialista A.P. Karremans, que estuda as interações ecológicas entre orquídeas e os seus polinizadores e dispersores de sementes.

As orquídeas têm polinizadores especializados, explica o autor, e a baunilha requer um tipo específico de abelha que só é encontrada nas regiões tropicais das Américas. Até hoje, nenhum produtor no mundo conseguiu encontrar um polinizador natural para substituí-las.

Entre aqueles que se propuseram a quebrar o monopólio espanhol da baunilha produzida no México estavam os franceses na ilha de Bourbon, no Oceano Índico. Em 1822, a colónia recebeu um lote de plantas de baunilha, cortadas da primeira a sobreviver e florescer na Europa. Embora a expectativa fosse alta, nenhuma fruta nasceu e os plantadores eventualmente resignaram-se.

Cada espécie de orquídea prospera em condições muito específicas. “Eu digo sempre que as orquídeas são muito sociais. Para a sua germinação, precisam de um fungo, para crescer, precisam de uma árvore e, para a polinização, precisam de uma abelha ou polinizador específico que se adapte à sua anatomia”, sublinha Menchaca García.

No entanto, no final de 1841, algo aconteceu em Bourbon que desafiou essas suposições.

Edmond: o rapaz que nos trouxe a baunilha

O agricultor Ferréol Bellier-Beaumont andava nas suas terras com um rapaz escravizado de 12 anos chamado Edmond quando este notou duas frutas de baunilha numa planta trepadeira, conta Ecott no seu livro.

Mas como assim? Os agricultores já tinham tentado, sem sucesso, e de repente essa trepadeira solitária tinha dado frutos. Edmond disse ser o responsável, mas, de início, Bellier-Beaumont não acreditou. Foi só quando alguns dias depois viu outra flor polinizada que pediu ao rapaz para contar o que tinha feito.

E Edmond mostrou-lhe. Cada orquídea de baunilha (vanilla planifolia) tem partes masculina e feminina divididas por uma membrana, para evitar a autopolinização.

O rapaz pegou numa flor próxima e descascou o lábio da orquídea com o dedo, levantou a membrana e pressionou as partes feminina e masculina juntas — uma manobra não totalmente diferente da polinização de uma melancia que tinha visto algum tempo antes.

Bellier-Beaumont ficou chocado, encantado e não conseguiu guardar a notícia para si. Edmond foi de imediato posto a passear pela ilha para mostrar o seu truque a outros agricultores.

“Depois disso, era possível começar a cultivar baunilha em Bournon, em Madagáscar e noutros lugares”, conta Karremans. “Isso aconteceu em meados de 1800, três séculos depois de os europeus ficarem a saber que a baunilha poderia ser usada. Eles demoraram 300 anos para saber como obter frutos da planta.”

Os agricultores de baunilha da Reunião realizaram o seu sonho: em 1848, conseguiram exportar 50 quilos de vagens de baunilha para França e, em 1898, quando produziram 200 toneladas de baunilha seca, ultrapassaram o México como fornecedor global.

Edmond não partilhou da mesma bonança. Embora tenha sido libertado juntamente com todos os escravos franceses em 1848, em 1852 foi acusado de orquestrar um assalto e condenado a cinco anos de prisão com trabalhos forçados.

Um botânico francês tentou ficar com o crédito da invenção de Edmond, alegando ter visitado Bourbon em 1838 e mostrado a um grupo de agricultores a técnica para polinizar a baunilha.

Edmond foi eventualmente libertado e a sua descoberta foi reconhecida (graças, em parte, ao apoio vigoroso do seu ex-dono), mas morreu pobre, aos 51 anos.

“O mesmo homem que gerou grande lucro a esta colónia ao descobrir como polinizar flores de baunilha morreu no hospital público em Sainte-Suzanne”, apareceu escrito no jornal local Moniteur, que registou a sua morte em 1852, de acordo com o livro de Ecott. “Foi um final pobre e miserável.”

Baunilha vale hoje mais que prata

A descoberta de Edmond Albius (o seu nome completo como homem livre e cidadão) mudou radicalmente o mercado global de baunilha. Poucas partes do mundo sofreram as repercussões como a região costeira de Veracruz, no México, onde a maior parte da baunilha era produzida antes da polinização manual ser descoberta.

Na época do momento “eureka” de Bourbon, os produtores no México ainda dependiam de abelhas locais para polinizar as flores.

Quando o mercado global foi dominado por baunilha de outros lugares, a indústria local não conseguiu competir. Hoje, a produção do México é responsável por apenas 5% do comércio de vagens naturais de baunilha.

A indústria tornou-se ainda mais complicada após o desenvolvimento, no final de 1800, da baunilha artificial, que agora abastece a maior parte do mercado.

Apenas 1% do mercado é servido por baunilha natural, que pode atingir preços de fazer arder os olhos: em 2018, atingiu um recorde de 445£, cerca de 520€, por kg, tornando-a mais valiosa em peso que a prata.

Aqueles que comercializam baunilha natural — mesmo no México — adotaram o método de polinização manual, que é muito mais fiável do que esperar por polinizadores naturais. Na verdade, todas as plantas de baunilha cultivadas no mundo agora são polinizadas manualmente, tornando a tarefa extremamente trabalhosa.

“As flores podem abrir no espaço de um mês, mas cada uma abre apenas durante algumas horas por dia. Então, todos os dias tens de caminhar pelos campos para polinizá-las manualmente. É extraordinário”, diz Menchaca García. “Sempre que vejo uma vagem de baunilha, digo a mim mesmo: ‘este é um produto feito à mão’.”

// BBC

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.