Email para a nora de Marcelo, o pistolão “parvo” e falhas de memória. Mãe das gémeas na CPI

Daniela Martins alega que só conheceu a nora de Marcelo Rebelo de Sousa depois de as filhas já terem sido tratadas e revela que avançou com uma queixa-crime contra a TVI.

A mãe das gémeas luso-brasileiras que foram tratadas com o medicamento mais caro do mundo em Portugal esteve esta sexta-feira no Parlamento para responder à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso, que envolve suspeitas de um favorecimento irregular no acesso ao fármaco.

Daniela Martins repetiu no Parlamento que não sabe quem marcou a primeira consulta das crianças em 2019 no Hospital de Santa Maria, após outra consulta ter sido desmarcada no Hospital Lusíadas.

“Soube depois que a consulta do Lusíadas poderia ser encaminhada para o Hospital de Santa Maria. Não sei quem desmarcou no Lusíadas e não sei quem marcou no Santa Maria”, disse Daniela Martins.

A mãe explicou que a marcação da consulta no Lusíadas para 6 de dezembro de 2019 aconteceu, porque conhecia o trabalho da médica Teresa Moreno, através de um email do hospital a dizer que o pedido “seria direcionado pela diretoria”.

Daniela Martins indicou que o primeiro contacto com Teresa Moreno — que trabalhava, à data dos factos, no Hospital de Santa Maria e no Lusíadas — surgiu em novembro de 2019 a partir de um email que nunca teve resposta.

Sobre a divergência que ocorreu com a médica, Daniela Martins esclareceu que aconteceu depois de a clínica não ter respondido se as crianças estavam “dentro dos critérios” para serem tratadas com Zolgensma.

Daniela Martins disse, todavia, que não se recorda quando recebeu a confirmação da consulta no Hospital Lusíadas e como chegou a Teresa Moreno, reforçando que contactou aquela unidade hospitalar através do email comercial.

“Não me recordo como recebi o email. Estava mais preocupada com corpo do email que dizia que tinha conseguido a consulta”, indicou.

O email para a nora de Marcelo

Sobre o famoso “pistolão”, — termo brasileiro para cunha — a mãe das crianças revelou que, em 2019, acreditava que estava a ser ajudada pelo Presidente da República. “Era o que toda a gente dizia no Hospital Santa Maria”, afirmou.

No entanto, Daniela Martins afirmou que essa suposição estava errada e que as suas filhas foram tratadas da mesma forma que outras crianças na mesma situação. A mãe das crianças também reiterou que não tinha “como saber o que acontecia nos bastidores” do hospital e que estava “fora do alcance” saber quem deu indicação para a marcação da primeira consulta, apesar de admitir ter curiosidade em saber.

Questionada pelo deputado do PSD, António Rodrigues, se conhecia o filho do Presidente da República, a mãe das crianças responde: “Eu não conheço o senhor Dr. Nuno Rebelo de Sousa. Conheci a mulher dele anos depois, no final de 2022, quando já estava no Brasil, num evento público, num shopping de São Paulo”.

O deputado socialista João Paulo Correira pressionou a mãe das gémeas, apontando para um email enviado a 17 de dezembro de 2019 da sua conta para Juliana Drummond, a mulher de Nuno Rebelo de Sousa — o que contradiz a sua versão de que só conheceu a nora de Marcelo após o tratamento. O email em causa inclui um agradecimento para ser transmitido ao então Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, por “toda a atenção que tem sido dada às minhas filhas”.

“Alguém deve ter enviado da minha conta pessoal. Não posso garantir que tenha sido eu que escrevi. Várias pessoas tinham acesso à minha caixa de email. Não tenho acesso ao email da Dra. Juliana e, na altura, os meus pedidos de ajuda eram públicos, direcionados a várias pessoas e não tenho maneira de saber a quem chegou”, justificou a mãe das gémeas.

Daniela Martins reiterou ainda várias vezes que não sabia por que é que o filho do Presidente estava tão interessado em falar do caso das suas filhas com responsáveis políticos portugueses e garante não ter tido “qualquer tipo de ajuda de políticos e autoridades portuguesas”.

Palavras “parvas” na entrevista à TVI

Um dos momentos mais inusitados da CPI surgiu quando André Ventura pediu para mostrar um excerto da entrevista de Daniela Martins à TVI, que desencadeou todo o caso. A mãe das gémeas recusou que as imagens voltassem a ser exibidas e criticou o canal por ter mostrado o rosto das filhas e instigado “ódio” contra a sua família, tendo até anunciado que avançou com uma queixa-crime contra a estação.

“O vídeo não acrescenta nada. E foi obtido de forma ilegal. A minha cliente já pediu desculpa pelas palavras parvas que disse na altura”, afirmou o advogado da mãe das gémeas, Wilson Bicalho, descrevendo a investigação como uma “armadilha”.

Daniela Martins denunciou ainda uma campanha para a denegrir em relação ao processo de obtenção de nacionalidade portuguesa das suas filhas, recordando que ela própria também era portuguesa e já viveu em Portugal.

“Disseram que vim fazer turismo de saúde. Facto que nunca aconteceu. Disseram que tirei a nacionalidade em 14 dias. Foi notícia falsa. Exibiram a minha morada, com endereço, fizeram imagens de drone da minha casa. Disseram que as minhas filhas furaram a fila, passaram à frente de outros portugueses. Coisas que nunca existiram”, vincou.

O caso recapitulado

Recorde-se que a polémica em torno deste caso rebentou com uma reportagem da TVI, que mostrou um vídeo onde a mãe das meninas confessa ter usado os seus “contactos” e um “pistolão” para garantir que as filhas eram tratadas em Portugal com o Zolgensma. No total, o tratamento custou mais de quatro milhões de euros ao SNS.

O “pistolão” em causa seria um pedido feito à nora de Marcelo Rebelo de Sousa, com o filho Nuno Rebelo de Sousa a ter depois contactado a Presidência da República sobre o caso das crianças. Marcelo, por sua vez, tem negado repetidamente que usou a sua influência para favorecer as gémeas e garante que seguiu o procedimento normal ao reencaminhar o caso para o Governo.

Um relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde revelou várias irregularidades no acesso das gémeas ao tratamento e inclusive apontou o dedo à Presidência da República, acusando Belém de condicionar a investigação. A IGAS concluiu ainda que Nuno Rebelo de Sousa invocou o nome de Marcelo para pressionar o então Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, a marcar a consulta para as crianças.

A rapidez na obtenção da nacionalidade portuguesa para as gémeas também levantou dúvidas, com o Observador a noticiar que o processo a demorou apenas duas semanas e as crianças foram tratadas ainda antes de terem números de utente no SNS.

A polémica levou o Ministério Público a abrir um inquérito e tanto o filho de Marcelo como Lacerda Sales já foram constituídos arguidos.