Até que ponto é legítimo rotular toda uma nação com base na atitude e no comportamento de um governo que, na maioria das vezes, não foi escolhido pelos seus cidadãos?
A Cultura de Cancelamento tem vindo a crescer nos últimos tempos e cada vez mais se cancelam produtos, marcas, pessoas, e até países.
Esta tendência tem por base o princípio de moralidade – se determinada entidade (seja ela uma pessoa, marca ou país) não apoia os valores morais que consideramos imprescindíveis, então não devemos seguir, comprar ou visitar o país em questão.
No que toca à experiência de viajar e conhecer novas culturas, a Cultura de Cancelamento está relacionada com a ação de determinados governos, que não só não cumprem os Direitos Humanos, como colocam os seus cidadãos sob um regime fanático e muitas vezes opressivo.
Mas a questão que se levanta é – até que ponto é justo cancelar um país por este não cumprir os Direitos Humanos? Até que ponto é legítimo rotular toda uma nação com base na atitude e no comportamento de um governo que, na maioria das vezes, não foi escolhido pelos seus cidadãos?
Bolhas de opinião – a causa ou a consequência?
A era digital tem vindo a fortalecer as chamadas “bolhas de opinião”. Apesar da ideia romantizada de que o mundo está interligado, e que vivemos na era da globalização, não é bem assim.
Na verdade, estamos cada vez mais perto de pessoas que partilham as mesmas opiniões que nós, e cada vez mais longe das que pensam o contrário. O exercício de calçar o sapato do outro e tentar compreender o ponto de vista de alguém que não tem o mesmo contexto que nós, é cada vez mais difícil.
Se deixarmos de visitar um determinado país pelos mais variados motivos, independentemente destes, estaremos apenas a engrandecer estas bolhas.
Num sentido mais extremo, estaremos a promover a criação de múltiplas “Coreias do Norte”, países cada vez mais fechados em si, onde o espaço para a liberdade de expressão não precisa de ser necessariamente limitado, mas sim circunscrito à sua bolha.
A certo ponto, na futura linha do tempo, teríamos países onde não vale a pena lutar por algo melhor, porque não se conhece melhor. Tal como hoje, possivelmente, acontece na Coreia do Norte.
O diálogo e a comunicação entre diferentes nações e culturas têm servido de ponte para o progresso e evolução. É ao tomarmos conhecimento de diferentes formas de vida, que questionamos a nossa e nos permitimos mudar, para algo que acreditamos ser melhor.
Ora, se cancelarmos uma panóplia de países e culturas e simplesmente os deixarmos de visitar estaremos, seguramente, a perder enquanto espécie humana e tornar-nos-emos ainda mais egocêntricos e fechados sob nós mesmos.
É válido o argumento de que, ao viajar para a Rússia, o Irão ou a Coreia do Norte estamos a contribuir para a economia destes países. Mas também é verdade que não é a quantia que advêm do turismo que sustenta estes regimes, já que isso são apenas migalhas no grande engenho que controla estas nações.
Estaremos a separar o trigo do joio?
Por entre os mais variados motivos que nos levam a querer cancelar um país, a grande maioria deles está relacionada com o seu governo.
Falamos de países com regimes opressivos, que mais do que governar o seu povo, querem manter-se no poder — mesmo que para isso tenham de atropelar os Direitos Humanos e muitos outros valores que não deveriam ser contestados.
O problema é que, ao deixar de viajar para um destes países, não estamos a separar o trigo do joio.
Uma nação não se faz apenas do seu governo. Por detrás destes regimes prepotentes estão pessoas, que na grande maioria das vezes não se identificam com quem os governa e pouco poder têm para alterar essa condição.
Uma nação faz-se dos seus cidadãos, da sua cultura, história e tradições. Ao cancelar um país, estamos a colocar “tudo no mesmo saco” e a riscar a oportunidade de conhecer pessoas que, por advirem de um contexto tão diferente, nos poderiam acrescentar algo.
Viajar é uma troca intercultural onde ganham todos – os que viajam, mas também os que recebem aqueles que viajam. Para castigar um governo (se de facto o estivermos a fazer!), estamos a perder a possibilidade de conhecer uma cultura feita de pessoas que não têm culpa da ação dos seus governos.
Podemos ter dois pesos e duas medidas?
Se de facto optarmos por cancelar os países cujos governos, deliberadamente e sem vergonha, não cumprem os princípios morais que consideramos relevantes, então devemos analisar cuidadosamente que países deveremos excluir.
Se queremos cancelar o Afeganistão, o Irão ou até a Coreia do Norte, então talvez também seja justo cancelar a Tailândia, a Turquia e quiçá até alguns países europeus.
A Tailândia, o país de templos e praias paradisíacas, onde diariamente se acumulam turistas vindos dos quatro cantos do mundo. É um dos países mais turísticos, pelos mais variados motivos.
Mas é também o país onde os Direitos Humanos não são levados à letra.
Na Tailândia habita uma minoria birmanesa, chamada Karen. São refugiados birmaneses que fugiram à perseguição no seu país e pediram asilo à vizinha Tailândia. O antigo Reino de Sião recebeu-os, mas não da forma que estaríamos à espera.
Esta minoria vive em zonas circunscritas da qual não pode sair, sem acesso a documentação legal e, portanto, à possibilidade de reconstruir uma nova vida, em condições.
Ou seja, apesar de a Tailândia lhes ter conferido asilo, não os reconhece como cidadãos. Os Karen não têm documentos de identificação, não podem ter um contrato de trabalho, alugar uma casa, e por aí adiante.
Sem mais opções, vivem do turismo – deixam-se visitar por turistas curiosos que vão procurar as “mulheres com um longo pescoço”, em troca de souvenirs que vendem, e que é a sua única fonte de rendimento. Para sobreviver, subjugam-se àquilo que é um verdadeiro “jardim zolóogico humano”.
Turquia
A Turquia, outro país onde, diariamente, se levantam balões de ar quente pejados de turistas, desejosos de admirar a pequena cidade de Capadócia ao amanhecer. É um país culturalmente excecional, mas é também o país que, em 2017, aceitou dinheiro da União Europeia, em troca de “resolver o problema dos refugiados”.
A ideia era simples – barrar a passagem para a Europa e não permitir que estes enchessem as nossas praias em barcos salva-vidas, tal como faziam desde 2015.
O Governo de Erdogan aceitou o dinheiro, mas não o utilizou para dar a estas pessoas as condições de vida que elas merecem. Qualquer turista mais atento não fica indiferente à quantidade de mendigos que populam as ruas de Istambul e as principais cidades turcas.
São refugiados que não têm documentação legal e, portanto, não podem ter um contrato de trabalho regular e dar-se ao luxo de viver uma vida condigna. Acabam por cair em trabalhos precários, se não em outras artimanhas de tráfico humano. Vivem um dia de cada vez, acalentado a esperança de um dia chegar à Europa.
Itália
E já que tocamos no sensível assunto da Crise de Refugiados na Europa, em 2015, então não nos podemos esquecer das medidas tomadas pelos governos grego e italiano.
A dada altura, o resgate marítimo foi simplesmente proibido, mesmo sabendo que esta medida ia contra a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 2015, que ambos os países assinaram.
Esta polémica ficou conhecida através do caso do português Miguel Duarte, que corria risco de prisão por “apoio à imigração ilegal”. As acusações contra o governo grego e italiano são várias e ambos os países enfrentam duras acusações frente ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em Estrasburgo.
Viajar faz bem?
A experiência de viagem é altamente subjetiva e cada um de nós a vive de uma forma diferente. Mas julgo que há algo de transversal a todos os viajantes – viajar torna-nos pessoas melhores. Acima de tudo porque viajar nos deixa expostos.
De um momento para o outro saltamos do conforto do nosso sofá, da companhia da nossa família e das jantaradas com amigos e damos por nós sentados numa berma de estrada, com uma mochila, completamente desamparados. Estamos entregues ao mundo.
À nossa frente desenha-se uma realidade completamente distinta, repleta de olhares indiscretos, cheiros confusos, e tradições que são para nós (muitas vezes) incompreensíveis.
Viajar deixa-nos expostos à diferença e, forçosamente, obriga-nos a normalizá-la. Mais do que isso, viajar ensina-nos a observar sem ter necessariamente de julgar. Não restam dúvidas de que viajar é uma das principais armas contra a intolerância e o egocentrismo.
Cancelar um país é a solução?
O mundo não é um mapa a preto e branco e as fronteiras entre países não delimitam, nem nunca delimitaram, os bons e os maus.
Neste preciso momento, enquanto que no Irão se luta pelo “direito de não usar o véu islâmico”, no Norte da Índia, minorias islâmicas são perseguidas por nacionalistas e lutam pelo “direito a usar o véu”.
O mundo é, muitas vezes, paradoxal e nele encontramos situações que nunca seremos capazes de compreender. Quanto mais não seja, porque vimos de uma cultura ocidental que se caracteriza por um conjunto de ideias e valores que a outros povos pouco ou nada lhes diz.
E esse é um sapato que, por muito que viajemos e por muito tolerantes que sejamos, nos é difícil descalçar. Tirar a lente ocidental não é fácil, se não mesmo impossível, quando o tema são os Direitos Humanos.
Sem mais saídas, viajar obriga-nos a aceitar a condição humana de “não compreender”, “não aceitar”, “não concordar”. E aceitar esta premissa, enquanto se continua a explorar outras coordenadas e a vestir novas culturas é uma das grandes lições que podemos tirar desta arte que é viajar.
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Pode sempre viajar para a Coreia do Norte, por exemplo… já sabe é que terá que ter algum cuidado com uma qualquer opinião que possa dar, uma opinião que possa “ofender” o regime do país.. Não “frequento” redes sociais pelo que, de alguma forma, estou afastado das “bolhas de opinião” (seja lá isto o que seja).
Eu gostaria que as democracias (sabemos que são muito frágeis) simplesmente não tivessem qualquer tipo negócio com estados autocráticos, que violam sem qualquer pudor os mais elementares direitos do homem. Acredito que, mais cedo ou mais tarde com o isolamento, estes estados autocráticos cairiam pela mão do próprio povo…
Nunca mais esqueci a visita a Portugal, no âmbito cimeira UE/África, de Muammar Gaddafi…. um carniceiro recebido pelo estado português, um estado democrático (dentro do possível).