Entre muitas mudanças, o coronavírus afetou o ensino. A pandemia interrompeu as aulas presenciais, mais do que uma vez, e trouxe novas rotinas. A aluna do ensino superior, Lúcia Gonçalves, conta ao ZAP as dificuldades graves que atravessou durante o ensino à distância. Lúcia tem 23 anos e frequenta o primeiro ano do mestrado em Sistemas e Media Interativos, na Universidade do Porto.
ZAP – Conta-me como tem sido este ano letivo. Começaste em outubro, como foi na altura?
Lúcia – Aulas presenciais. A primeira grande diferença que senti é que não sentia o calor das pessoas. Após um mês de aulas, senti que ainda nem tinha falado com ninguém da minha turma.
ZAP – As pessoas estavam lá mas não estavam juntas.
Lúcia – Não havia comunicação entre os alunos. Foi um choque, no início. Na minha cabeça, achava que ia ser tudo mais ou menos igual, mas foi complicado estabelecer amizades com pessoas que não conhecia de lado nenhum, havia sempre algum receio de estarmos juntos.
ZAP – Passavas o dia sozinha, nos intervalos?
Lúcia – Sim. Sempre sozinha.
ZAP – Em janeiro as aulas presenciais foram suspensas. Como foi o ensino à distância, até abril?
Lúcia – Muito mau. No início senti entusiasmo por passar a ter aulas online, porque não tinha que me deslocar, podia assistir às aulas de pijama… Mas, com o passar do tempo, começou a ser demasiado cansativo. Nas últimas semanas senti a necessidade de deixar a minha secretária, tive aulas na cozinha. E outra coisa que passou a ser muito diferente: o meu curso é muito prático, temos que entregar quatro projetos por semana e, nos últimos tempos, nunca consegui entregar os projetos a tempo.
ZAP – Mas isso já acontecia?
Lúcia – Não.
ZAP – E passou a acontecer porquê?
Lúcia – Acho que por causa da exaustão. Estar fechada em casa, não poder sair. Eu até tinha demasiado tempo para os projetos, mas não tinha motivação. E agora, na semana do regresso às aulas presenciais, foi a primeira semana em que entreguei tudo a horas!
ZAP – Consideras que há excesso no número de projetos para entregar?
Lúcia – Eu tenho noção de que o meu curso é muito trabalhoso. Não digo que não sejam trabalhos a mais para uma semana mas, estando num estado de exaustão psicológica, isto acaba por ser pior.
ZAP – Conseguiste arranjar alguma estratégia para conseguir terminar os trabalhos?
Lúcia – Não. Isto é um bocado mau, mas acho que não consegui reinventar-me.
ZAP – E o teu descanso?
Lúcia – Já fiz demasiadas diretas durante este curso. Durante as aulas online, não conseguia dormir, sinceramente. Embora os meus problemas relacionados com o stress já venham de trás. Eu lembro-me de que, uma vez, acordei a fazer força no pulso. Apertei tanto a mão que criei uma ferida em mim mesma, enquanto dormia. Por causa do stress.
ZAP – Dormiste pouco, nestes meses.
Lúcia – Na semana mais agressiva, fiquei a trabalhar até às nove da manhã, dormi das nove às onze, às onze tinha reunião de grupo, almoçava a seguir, de tarde tinha outro trabalho e apresentação, e às seis da tarde começavam as aulas, até às onze da noite. Nesse dia, por exemplo, só dormi uma hora ou duas horas. E isto não faz nada bem.
ZAP – Compensaste o descanso no dia seguinte?
Lúcia – Só na semana seguinte.
ZAP – A concentração surgia, para poderes completar os projetos como deve ser? Como avalias o teu rendimento e o teu aproveitamento, nestes últimos meses?
Lúcia – Se tivesse outro tempo, os projetos seriam muito melhores e, se calhar, eu não demoraria tanto para os fazer.
ZAP – Alguma vez comentaste esse teu estado com alguém?
Lúcia – Não sou muito de falar abertamente com as pessoas mas já comentei com algumas pessoas da minha turma. Algumas sentem o mesmo que eu: além de ser demasiado trabalho, o período de aulas online foi bastante desmotivador. Mas o que notei é que há pessoas que têm a capacidade de dizer: “Eu não consigo fazer isto tudo numa semana, por isso não vou fazer tudo”.
ZAP – E o que lhes acontece se não fizerem os trabalhos todos?
Lúcia – Os professores costumam compreender. Principalmente porque é um curso pós-laboral.
ZAP – Alguma vez tomaste essa opção de “não consigo fazer quatro, vou fazer dois”?
Lúcia – Não consigo tomar essa decisão.
ZAP – Neste período de ensino à distância, encontras alternativa? Poderia não haver tantos projetos por entregar, todas as semanas?
Lúcia – O problema de estar em cursos de tecnologia é que a tecnologia fica para trás no tempo. Por isso, os professores tentam atualizar-nos constantemente. Por um lado, percebo que isso é importante mas, às vezes, seria melhor ensinar o que é mesmo fundamental. A teoria acaba por ser mais ou menos a mesma, de um software para o outro. Mas não sei dizer se isto seria uma boa opção.
ZAP – Não estás arrependida de teres escolhido este curso?
Lúcia – Hum… Até se tornou muito mais interessante do que eu estava à espera, por acaso…
ZAP – Vem aí um “mas”, ou…?
Lúcia – Mas… Não sei até que ponto irei ter lesões por causa do esforço que estou a fazer.
ZAP – Que tipo de lesões?
Lúcia – A nível mental.
ZAP – Já sentes alguma coisa?
Lúcia – Para já, nada. Mas tenho noção de que pode acontecer.
ZAP – Estás melhor desde que as aulas presenciais voltaram?
Lúcia – Muito melhor.
ZAP – O que dirias a alguém que passará, ou já passa, por uma situação semelhante?
Lúcia – Comecei a fazer exercício físico durante o período de aulas online. Isso ajudava-me bastante a relaxar. Agora que as aulas presenciais voltaram, parei de fazer exercício físico.
ZAP – Sentes motivação e tranquilidade para os próximos tempos?
Lúcia – Tranquilidade, nem por isso. Houve matérias que teriam de ser explicadas presencialmente porque não tínhamos o material necessário em casa. Agora vai ser um bocado difícil colocar em prática a teoria que um professor numa tela ensinou. Os professores estão a tentar recuperar mas não sei…
ZAP – Como estão os teus colegas de curso?
Lúcia – Agora mais aliviados. Havia mais gente desmotivada, como eu, mas as aulas presenciais são uma lufada de ar fresco. Mas há muita gente a tomar medicamentos antistress. E isso assusta-me um bocado. Alguma coisa aqui está mal.
ZAP – Tu nunca recorreste a medicamentos?
Lúcia – Já me receitaram antidepressivos. Acho que a fase mais stressante da minha vida foi quando eu estava quase a entrar na universidade. E, sempre que tinha um pico de stress, tinha um ataque de ansiedade e desmaiava. Fui para psiquiatria e receitaram-me quatro medicamentos por dia. Na altura eu tinha 17 anos. Fiquei a olhar para aquilo e pensei: “Como é que uma criança de 17 anos vai ficar a tomar isto?”. Aquilo meteu-me tanta confusão que eu pensei: “Tenho de ser eu a mudar, não é este o caminho que eu quero seguir. O que está mal é eu estar a pressionar-me demais”. O que fiz? Tirei umas semaninhas de férias, tirei tempo para mim; faltei às aulas durante três semanas. E ficou tudo muito mais calmo.
ZAP – Regressando à atualidade: tens vida para além do teu curso?
Lúcia – Durante as aulas online, não saía de casa. Acordava, fazia os trabalhos, estava nas aulas e ia dormir. Não era muito mais do que isto. Mas no último mês comecei a dizer: “Hoje vou sair, não vou fazer qualquer trabalho. Vou só passear”. E é bom.
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