O Uruguai tornou-se esta terça-feira o primeiro país latino-americano a legalizar a produção, distribuição e venda de cannabis, assim como o primeiro do mundo a submeter todas estas etapas ao controlo do Estado.
O projeto foi aprovado após 11 horas de discussão no Senado, após ter passado pela Câmara. Segundo a BBC,, a aprovação do presidente José Pepe Mujica é tida como certa.
Segundo o governo, o objectivo da lei é tirar poder do narcotráfico e reduzir a dependência dos uruguaios às drogas mais pesadas. Mas a lei foi muito atacada pela oposição. O líder “colorado”, Pedro Bordaberry, disse que “não se pode fazer experiências com isto, são coisas muito sérias”.
Mas como vai funcionar a nova lei? Veja abaixo.
Quem vai supervisionar a ‘indústria’ da cannabis?
Pela lei, o Estado assume o controlo e a regulação das actividades de importação, produção, aquisição, a qualquer título, armazenamento, comercialização e distribuição de cannabis ou dos seus derivados.
Uma agência estatal, o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCCA), ligado ao Ministério da Saúde Pública, será responsável, por sua vez, por emitir licenças e controlar a produção, distribuição e compra e venda da droga.
Em suma, todas as fases do processo terão, de alguma forma ou de outra, a presença do Estado .
Quem pode comprar e plantar cannabis?
Todos os uruguaios ou residentes no país, maiores de 18 anos, que se tenham registado como consumidores para o uso recreativo ou medicinal de cannabis poderão comprar a erva em farmácias autorizadas.
Além disso, os usuários poderão ter acesso à droga de outras por autocultivo pessoal (até seis pés de cannabis e até 480 gramas por colheita por ano), através de clubes de culturas (com um mínimo de 15 membros e um máximo de 45 e um número proporcional de pés de cannabis com um máximo de 99).
A lei limita a quantidade máxima com que cada pessoa pode possuir: 40 gramas. A legislação também determina o máximo que uma pessoa pode gastar por mês com o consumo do produto.
Ainda não está claro, no entanto, qual será o preço da cannabis legal. Embora o governo pretenda competir com o narcotráfico estabelecendo preços de mercado — por exemplo, US$ 1 (0.73€) por grama —, organizações de consumidores asseguram que essa meta será difícil de ser cumprida.
A erva também poderá ser cultivada para o uso científico e medicinal, que poderá ser obtida por meio de receita médica.
A lei também legaliza a produção da cannabis no princípio activo conhecido como cânhamo industrial (presente em alguns cremes hidratastes, por exemplo).
Produtores também poderão cultivar a erva, desde que autorizados pelo Estado.
Como vão ser concedidas as licenças?
De acordo com dados do Conselho Nacional de Drogas do Uruguai, 20% dos uruguaios com idade entre 15 e 65 anos usaram cannabis nalgum momento da sua vida e 8,3 % fizeram-no no último ano.
A plantação de 10 a 20 hectares (perto de 15 vezes a dimensão de um campo de futebol) de cannabis em estufa seria suficiente para atender à procura nacional, de acordo com estimativas oficiais preliminares.
De acordo com uma pesquisa realizada por uma consultoria privada, 63% dos uruguaios são contra a lei de regulação da cannabis, uma proporção semelhante à registada há um ano, quando o presidente do Uruguai, José Mujica, apresentou a proposta.
O projecto de lei não especifica quais serão os critérios para conceder as licenças, qual será o custo da erva ou quem ficará autorizado a cultivar o produto.
Por outro lado, a regulamentação estabelece a criação dos registos correspondentes para a produção, o autocultivo e o acesso à cannabis por meio de farmácias.
Estes registos serão guardados pela lei de protecção de dados sensíveis ou lei do habeas datas e serão administrados pelo Instituto de Regulação e Controlo de Cannabis.
De acordo com estimativas do governo, o volume previsto de produção da cannabis é de 26 toneladas anuais, o equivalente ao total consumido no mercado negro.
Segundo afirmou à BBC o director do Conselho Nacional de Drogas do Uruguai, Julio Calzada, o governo prevê conceder inicialmente poucas licenças a produtores de cannabis (perto de 20) de forma a garantir a segurança e os níveis de colheita necessária para atender à procura.
As primeiras licenças devem começar a ser concedidas em meados do próximo ano.
Qualquer plantação não autorizada deve ser destruída com a intervenção de um juiz e o IRCCA será responsável pela implementação das sanções caso haja violações das normas de licenciamento.
De que forma a legalização afectará outros países?
A cannabis será produzida em solo uruguaio, mas as sementes poderão ser provenientes de outros países.
Além disso, o Uruguai poderá voltar-se para o mercado global para vender suas sementes e poderá exportar os seus produtos para outros países onde o uso medicinal ou recreativo da droga é permitido.
Segundo Calzada, “há um movimento interessante de produtores, agricultores, tanto a nível nacional como internacional, que excede em muito as licenças que o Estado irá proporcionar.”
“Há empresas interessadas e também nalguns casos governos, que estão interessados em licenças para o uso medicinal”, diz ele.
Alguns países, entretanto, como o México e o Brasil, demonstraram preocupação com a aprovação da lei.
“Em qualquer momento tentamos convencer algum país do que estamos aqui a fazer”, diz Calzada, “mas queremos dar a garantia a outros países de que a cannabis produzida legalmente aqui não vai acabar no mercado negro. Este é o nosso compromisso”.
O consumo deve aumentar?
Segundo o governo, a medida não ampliará o mercado da cannabis: a lei simplesmente regulariza o uso para não incentivar o consumo.
No entanto, os opositores da lei temem quem, com a legalização, mais jovens queiram consumir a droga.
O governo já anunciou que vai desenvolver planos para prevenir o consumo e proibiu a publicidade e venda do produto para menores de 18 anos.
A lei também determina a criação de uma Unidade de Monitoização e Avaliação da aplicação e cumprimento da nova legislação.
Segundo o governo, as receitas obtidas com a legalização da cannabis serão destinadas ao financiamento de programas de prevenção, reabilitação e outros fins sociais .
A indústria de cannabis pode crescer?
Enquanto o governo diz que a prioridade é roubar o negócio do tráfico de drogas e promover a prevenção, algumas pessoas disseram que a lei poderia até trazer benefícios económicos para o país.
De acordo com o grupo que reúne as organizações a favor do projecto, o Regulación Responsable, estão abertas “oportunidades de negócios para os produtores nacionais, farmácias e outros actores envolvidos na cadeia de produção”.
“Nos últimos anos, o mundo iniciou um processo de pesquisa e geração de conhecimento sobre a cannabis , especialmente na área médica e farmacêutica”, disse à BBC Martin Collazos, do Regulación Responsable.
“Há cannabis com fins psicoactivos, mas também industriais: produção de tecido a base de cânhamo, papel, biocombustíveis e infinitas possibilidades de incorporar a produção de mais-valia da cannabis”, diz ele .
Actualmente, estima-se que o mercado de cannabis ilegal no Uruguai movimente cerca de US$ 30 milhões (perto de 22 milhões de euros) por ano.
ZAP/BBC