“Uma rejeição devastadora, ponto por ponto” – é desta forma que o Guardian caracteriza a resposta da União Europeia (UE) aos vários pontos que David Frost, o negociador de Boris Johnson para o ‘Brexit’, tem discutido com a propósito da fronteira entre as Irlandas.
Esse é um dos temas quentes da possível saída do Reino Unido da UE e um dos principais travões a um acordo entre as duas partes, noticiou esta terça-feira o Observador.
Documentos obtidos pelo jornal britânico revelam as várias falhas que a equipa negocial de Bruxelas sublinhou e contrariam, dessa forma, declarações do próprio primeiro-ministro. Na segunda-feira, Boris Johnson garantiu que ainda não tinha recebido qualquer ‘feedback’ sobre o esboço negocial que já tinha sido entregue junto da UE e que defendia a reinstituição de fronteiras aduaneiras na ilha da Irlanda.
De acordo com esse esboço, a Irlanda do Norte permaneceria no mercado único europeu para bens e eletricidade, se o seu parlamento consentisse, dando, desta forma, aos unionistas do DUP o direito de veto, não só antes do acordo entrar em vigor, mas a cada quatro anos daí para a frente.
Segundo indicou o Observador, uma das razões pelas quais os negociadores de Bruxelas consideram o plano inviável passa pelo facto de o veto parlamentar dar ao DUP a oportunidade de impedir a existência de uma zona regulatória para toda a ilha da Irlanda – ideia que Boris Johnson queria materializar.
Além disso, a proposta de criar uma fronteira aduaneira pode criar uma grande disrupção na economia da Irlanda no seu todo. Os negociadores da UE assinalam que essa ideia já foi rejeitada por vários grupos que representam empresas da Irlanda do Norte.
Outra das razões enunciadas pela UE prende-se com o seguinte: o Reino Unido quer um plano de contingência de zero controlos, inspeções ou infraestruturas fronteiriças mesmo que o DUP dê uso ao seu direito de veto em relação à participação da Irlanda do Norte no mercado único. Esta medida expunha e fragilizava o bloco europeu de tal forma que este ficava indefeso perante ameaças económicas.
A proposta de Boris Johnson, continuou a enumerar o Observador, deixa a cargo de um comité conjunto UE-RU a responsabilidade de pensar e definir como seria possível evitar controlos aduaneiros nas fronteiras das Irlandas, tendo em conta que estão em jogo dois territórios com conjuntos de regras distintos. Mas não tem um plano alternativo para o caso de esta solução não ser aceite.
Ainda: o Reino Unido propõe uma reforma da Convenção de Trânsito Comum de forma a evitar a necessidade de criar novas infraestruturas (postos de controlo fronteiriços nos dois lados da fronteira, para controlar os bens que por ali teriam de passar). Bruxelas recusa, afirmando que isso faria com que outros países de fora da UE quisessem isenções semelhantes, o que colocaria em risco o mercado interno.
Para os negociadores da UE, o plano acarreta aquilo que pode ser visto como uma inaceitável exclusão dos negócios de venda em atacado de pequena e média dimensão dos processos e deveres alfandegários, mas falha ao não apontar detalhes sobre como seria possível combater o contrabando.
Também sobre o IVA, os negociadores britânicos não conseguiram apresentar nenhuma solução de como seria possível evitar pagamentos e controlos fronteiriços.
Com estas propostas de Boris Johnson, todos os apoios estatais que Theresa May tinha acedido fazer, de forma a garantir à UE que os negócios da Irlanda do Norte não teriam uma vantagem competitiva maior, foram apagados. Mas a Irlanda do Norte teria, ainda assim, de competir junto do mercado único no que diz respeito ao negócio da eletricidade.
Mais: o Reino Unido teria acesso a uma grande quantidade de bases de dados da UE para permitir que policiassem as fronteiras alfandegárias na ilha da Irlanda e na fronteira entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha. O Governo britânico manteria acesso a tudo isso, caso a DUP vetasse o alinhamento como mercado único.
O Observador notou que tudo indica que este rebater de propostas por parte da UE foi entregue a David Frost, tanto na sexta-feira passada como nesta segunda-feira. É pelo menos isso que apontam os documentos citados pelo Guardian, compilados na sequência de um ‘briefing’ de diplomatas “europeus” feito com a própria Comissão.
A mensagem terá, depois, chegado até Boris Johnson, através de uma série de chamadas telefónicas feitas ao longo do fim-de-semana com líderes europeus. Nesses momentos terá ficado claro que as propostas britânicas não eram suficientes para criar uma base sólida de negociação.
Depois da discussão desta segunda entre David Frost e a equipa de negociação da Comissão Europeia, um porta-voz do governo do Reino Unido disse que essas reações trouxeram a clareza procurada sobre as propostas.
A UE ainda não aceitou entrar nas negociações mais detalhadas porque diz existirem “falhas fundamentais” no ponto de arranque para a discussão do ‘Brexit’.
“Depois de várias horas de discussão na semana passada, o Reino Unido apresentou hoje [segunda-feira] novas propostas. Isto oferece maior detalhe técnico sobre temas relacionados com alfândegas e regulamentações de bens, de forma a clarificar a forma como as propostas britânicas podem ser operacionalizadas”, disse um porta-voz do governo inglês.
A UE, porém, desvalorizou as informações vindas de Downing Street sobre uma “contra-proposta” que, teoricamente, seria esperada da parte de Bruxelas nos próximos dias. “É o Reino Unido que quer substituir o plano de contingência – e é essa a nossa solução”, afirmou um diplomata europeu.
Uma porta-voz da Comissão Europeia afirmou que a Europa dos 27 continua com a opinião de que o Reino Unido não conseguiu dar uma alternativa à situação da Irlanda que evitasse uma “fronteira rígida”, ao manter a Irlanda do Norte no mercado único.
“Todos concordamos que é preciso uma solução trabalhável e não uma coisa qualquer, baseada em combinações não testadas e revogáveis, que só seriam debatidas durante o período transitório. Neste momento, as propostas do Reino Unido não cumprem com os objetivos do protocolo ‘Irlanda/Irlanda do Norte’ e isto é a visão partilhada do Parlamento Europeu e de todos os Estados-membros”, acrescentou.
‘Brexit’ sem acordo, Reino Unido com dívida de 90%
O ‘think-tank’ Institute for Fiscal Studies (IFS) publicou um estudo onde alerta que a dívida pública do Reino Unido poderá subir para perto dos 90% se o governo de Boris Johnson mantiver o seu plano para aumentar a despesa em áreas como a educação e a saúde e, ao mesmo tempo, houver um ‘Brexit’ sem acordo com Bruxelas, noticiou o Observador.
De acordo com o IFS, o nível da dívida do Reino Unido pode assim bater num nível perto dos 90% do PIB britânico já em 2020 – o que poderá significar que o país pode passar a ter a maior dívida pública desde 1966, ano em que esse valor se fixou nos 91,95%.
Seja como for, a subida da dívida pública britânica seria pouco mais do que a continuação de um trajeto generalizado das últimas duas décadas, pese embora o facto de os últimos dois anos terem feito coincidir uma descida tímida da dívida pública ao mesmo tempo que a economia registou um crescimento anémico, nunca acima dos 0,8% do PIB.
Os últimos dados oficiais da dívida pública britânica, divulgados em março deste ano, apontam para 85,2% do PIB – o mais alto desde 1968.
A dívida pública britânica registou um período de subida ano após ano entre 2001/2002 e 2016/2017, passando dos 33,7% para os 86,5% do PIB. Desde 2016/2017, tem vindo a diminuir timidamente, assentando nos 85,2% atuais (a 18 de outubro, serão divulgados novos dados provisórios). Essa tendência de descida recente poderá ser contrariada pela incerteza de um hard ‘Brexit’ aliada a um aumento da despesa pública, avisa do IFS.
“Podemos acabar numa espiral ascendente da dívida e do défice e numa situação em que teríamos de atravessar outro período de austeridade para resolver o problema”, disse o diretor do IFS, Paul Johnson, citado pelo Guardian.
O responsável criticou o plano do governo de Boris Johnson: “O governo está à deriva, sem qualquer âncora fiscal. Perante os sinais extraordinários de incerteza e riscos que a economia e as finanças públicas têm pela frente, não se deveria estar a tentar oferecer ainda mais baixas de impostos generalizadas em qualquer orçamento daqui em diante”.
Parlamento britânico suspenso até 14 de outubro
O parlamento britânico vai ser suspenso a partir desta terça-feira até à próxima segunda-feira, dia em que a rainha Isabel II vai fazer um discurso com o novo programa legislativo do governo de Boris Johnson, informou a agência Lusa.
Os trabalhos deverão ser suspensos no final desta terça-feira e retomados a 14 de outubro, com o chamado Discurso da Rainha, protocolo que inclui a deslocação da monarca ao parlamento para iniciar uma nova sessão legislativa.
Apesar de ter defendido a suspensão mais curta, para permitir a participação do primeiro-ministro, Boris Johnson, no debate semanal de quarta-feira com os deputados, o partido Trabalhista desta vez não se opôs à suspensão.
Em setembro, trabalhistas, nacionalistas escoceses e liberais democratas envolveram-se em ações judiciais contra a suspensão do parlamento por cinco semanas, autorizada pela rainha a conselho do governo. No final, o Supremo Tribunal, considerou a medida “ilegal, nula e sem efeito”, alegando que o objetivo era impedir que o parlamento cumprisse o papel de escrutinar o governo, reabrindo duas semanas depois do início.
Boris Johnson argumentou que a abertura de uma nova sessão legislativa permite introduzir uma nova proposta de lei para a Saída do Reino Unido da UE caso consiga chegar a um acordo com Bruxelas, na sequência da proposta feita na segunda-feira para romper o impasse do ‘Brexit’.
Porém, também pretende apresentar uma série de medidas para investimento em serviços públicos, infraestruturas, combate ao crime e proteção do ambiente são outros dos pontos que pretende incluir.
“Quero cumprir as prioridades das pessoas. Através de um Discurso da Rainha, o governo vai definir os seus planos para o NHS [sistema nacional de saúde], escolas, combate ao crime, investimento em infraestruturas e construção de uma economia forte”, disse.
O discurso é seguido por um debate, que deverá culminar numa votação na semana seguinte, o qual será também um teste à confiança dos deputados no governo, o qual não possui atualmente maioria no parlamento.