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Um medicamento barato salvaria 500 mil crianças por ano. Por que os médicos não o receitam?

abbeyman200 / Flickr

Rapazes a brincar no rio Ganges, Índia

Um estudo recente, conduzido por investigadores da Universidade do Sul da Califórnia, lança luz sobre as razões pelas quais as crianças não estão a receber um tratamento acessível e eficaz para a diarreia.

Os profissionais de saúde das nações em desenvolvimento estão cientes de que os chamados sais de reidratação oral (SRO), um tratamento de baixo custo, podem salvar vidas ao tratar doenças diarreicas, que estão entre as principais causas de mortalidade infantil a nível global.

Apesar disso, poucos médicos os prescrevem.

Um novo estudo, publicado o mês passado na revista Science, analisou agora a grande diferença de perceção entre os tratamentos que os prestadores de cuidados de saúde pensam que os pacientes querem e os tratamentos que os pacientes realmente querem.

Identificar as razões por trás deste fosso de conhecimento, dizem os autores do estudo, poderia ajudar a salvar meio milhão de vidas por ano e reduzir o uso desnecessário de antibióticos.

“Mesmo quando as crianças procuram cuidados de um profissional de saúde para a sua diarreia, como a maioria faz, muitas vezes não recebem SRO, que custa apenas alguns cêntimos e que é recomendado pela OMS há décadas,” explica ao SciTechDaily o autor principal do estudo, Neeraj Sood.

Esta questão intriga os especialistas há muitos anos, e queríamos chegar ao fundo dela,” acrescenta Sood,  investigador no Centro Schaeffer da Universidade do Sul da Califórnia e professor na Escola de Políticas Públicas Price da mesma universidade.

No âmbito do seu estudo, os investigadores começaram por fazer uma análise mais detalhada da doença infantil na Índia.

pelo menos três explicações comuns para a subprescrição de SRO na Índia, o país mais populoso e com o maior número de casos de diarreia infantil do mundo.

Em primeiro lugar, os médicos indianos assumem que os seus pacientes não querem sais de reidratação oral, que são vendidos num pequeno pacote e se dissolvem em água, porque têm mau sabor ou porque não são considerados “medicamentos reais” como os antibióticos.

Além disso, apontam os investigadores, há frequentemente escassez de SRO no mercado: estes sais tendem a estar esgotados porque não são tão rentáveis como outros tratamentos.

Uma terceira razão para a subprescrição deste tratamento poderá ter a ver com a rentabilidade para os médicos, que ganham mais dinheiro a receitar antibióticos — mesmo que sejam ineficazes contra a diarreia viral.

Para testar estas três hipóteses, Sood e os colegas estudaram os hábitos de prescrição de mais de 2.000 prestadores de cuidados de saúde em 253 cidades de média dimensão nos estados indianos de Karnataka e Bihar.

UNICEF / Wikipedia

Embalagens de sais de reidratação oral

Os investigadores selecionaram estados com demografias socioeconómicas e acesso aos cuidados de saúde bastante diferentes, para garantir que os resultados fossem representativos de uma população ampla.

Bihar, um dos estados mais pobres da Índia, tem um uso de SRO abaixo da média, enquanto em Karnataka, com um rendimento per capita acima da média, o uso destes sais está também acima da média.

Os investigadores contrataram então pessoas, que foram treinadas para agir como pacientes ou cuidadores de crianças enfermas.

Estes “pacientes padrão” receberam um guião para usar em visitas não anunciadas a consultórios médicos, onde apresentariam um caso de diarreia viral — para a qual os antibióticos não são apropriados — no seu “filho de 2 anos”.

Os “pacientes” realizaram então cerca de 2.000 visitas ao seu médico designado, ao qual expressavam uma de três opiniões em relação ao tratamento a receber: preferência por SRO, preferência or antibióticos, ou nenhuma preferência de tratamento.

Durante as visitas, os pacientes indicavam a sua preferência mostrando ao prestador de cuidados de saúde uma fotografia de uma embalagem de SRO ou antibióticos. O conjunto de pacientes sem preferência de tratamento simplesmente pedia ao médico uma recomendação.

Para controlar a prescrição motivada por lucro, alguns dos pacientes instruídos a não ter preferência de tratamento informavam o prestador de que comprariam medicamentos noutro local.

Além disso, para estimar o efeito dos esgotamentos de stock, os investigadores distribuíram previamente, um fornecimento de seis semanas de SRO a todos os prestadores em metade das 253 cidades, escolhidas de forma aleatória.

Os investigadores descobriram que as perceções dos prestadores sobre as preferências dos pacientes são o maior obstáculo à prescrição de SRO — não porque os cuidadores não querem SRO, mas porque os prestadores assumem que a maioria dos pacientes não quer o tratamento.

A perceção dos prestadores de cuidados de saúde de que os pacientes não querem SRO foi responsável por cerca 42% da subprescrição, enquanto a escassez de stock e os incentivos financeiros explicaram apenas 6% e 5%, respetivamente.

Apesar de décadas de conhecimento generalizado de que o SRO é uma intervenção que salva vidas e pode salvar as vidas de crianças que sofrem de diarreia, as taxas de uso de SRO permanecem obstinadamente baixas em muitos países, como a Índia,” explica Manoj Mohanan, coautor do estudo e professor na Escola de Políticas Públicas Sanford da Universidade Duke.

Alterar o comportamento dos prestadores em relação à prescrição de SRO continua a ser um enorme desafio”, salienta o investigador.

“Estes resultados podem ser usados para desenhar intervenções que encorajem pacientes e cuidadores a expressar uma preferência por SRO ao procurar cuidados, conclui  Mohanan.

Aumentar o uso de sais de reidratação oral pode assim não só salvar muitas das 500 mil vidas que todos os anos se perdem para enfermidades relacionadas com diarreia viral, como também ajudar a combater a resistência aos antibióticos — que, de acordo com a OMS, é uma das principais ameaças globais à saúde pública.

Armando Batista, ZAP //

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