Na semana passada, o governo da Ucrânia pressionou as principais plataformas tecnológicas a repensarem a sua relação com a Rússia, e tem sido bastante bem-sucedido.
As empresas detentoras de redes sociais reduziram o alcance dos meios de comunicação apoiados pelo Estado russo, por exemplo, e a Apple deixou de vender os seus produtos e limitou alguns serviços na Rússia.
Mas agora a Ucrânia está a pressionar no sentido de algo ainda mais dramático e consequente, segundo noticia a CNN Portugal.
Na segunda-feira, o governo da Ucrânia pediu que a Rússia fosse desligada da rede global de internet. Enviou uma carta com um apelo à ICANN, a organização internacional sem fins lucrativos sediada nos EUA que supervisiona o sistema global de nomes de domínio e endereços IP na internet.
“Estou a enviar-vos esta carta em nome do povo da Ucrânia, pedindo-vos que considerem a necessidade urgente de introduzir sanções rigorosas contra a Federação Russa no campo da regulamentação DNS [Sistema de Nomes de Domínio], em resposta aos seus atos de agressão contra a Ucrânia e os seus cidadãos”, escreveu Andrii Nabok, representante da Ucrânia no Comité Consultivo Governamental da ICANN.
Os especialistas na gestão da internet dizem que o pedido da Ucrânia, a ser cumprido, retiraria efetivamente a Rússia da internet, deixando os sites russos sem uma casa. Os endereços de e-mail deixariam de funcionar e os utilizadores da internet não conseguiriam iniciar sessão. A Rússia ver-se-ia de repente numa ilha digital.
Mas esses mesmos especialistas têm dúvidas que o pedido da Ucrânia venha a ser atendido. Por um lado, dizem, isso abriria um perigoso precedente que poderia dar a certos países autoritários um pretexto para fazer exigências semelhantes.
Por outro lado, não é claro que a ICANN possa tomar tal decisão, mesmo que muitos o desejassem. Para além disso, acrescentaram, isolar a Rússia do resto do mundo digital poderia dar ao Kremlin exatamente aquilo que este pretende: uma população incapaz de ter acesso a informações do exterior.
Governos como o da China têm procurado excluir o seu próprio povo do mundo digital externo. Mas o pedido da Ucrânia é inédito, de acordo com Vint Cerf, considerado um dos pais da internet.
“É a primeira vez, que me lembre, que um governo pede à ICANN para interferir no funcionamento normal” do sistema de nomes de domínio a uma escala destas, disse Cerf à CNN Business.
“A internet opera em grande medida por causa de níveis substanciais de confiança entre os muitos componentes do seu ecossistema”, acrescentou Cerf. “Viabilizar este pedido teria consequências negativas em muitas dimensões“.
A carta foi referida pela primeira vez pela revista Rolling Stone. Angelina Lopez, porta-voz da ICANN, confirmou à CNN a receção da carta e que a mesma estava a ser avaliada pela entidade, mas recusou comentar.
Como iria funcionar
No âmbito do seu pedido, Nabok disse que o código de internet da Rússia — .ru — e os seus equivalentes em cirílico deveriam ser anulados.
Além disso, Nabok disse que iria enviar um pedido separado para os registos regionais de internet da Europa e da Ásia Central, solicitando-lhes que retirassem todos os endereços IP que tenham atribuído à Rússia.
Nabok argumentou que estas medidas seriam outra forma de sancionar a Rússia pela sua invasão da Ucrânia, e que ajudaria os utilizadores da internet a ter acesso a “informações fiáveis em zonas de domínio alternativas, impedindo a propaganda e a desinformação”.
Os especialistas em gestão da internet afirmam que apesar de ser possível imaginar que a proposta da Ucrânia possa resultar, pô-la em prática é uma questão diferente.
Em teoria, isolar o domínio .ru da rede global de internet pode ser tão simples como excluir uma linha de instruções dos principais servidores raiz de todo o mundo, que atualmente dizem aos navegadores de internet para onde devem ir quando desejam aceder a um site russo, disse Mitch Stoltz, advogado sénior do grupo de direitos digitais Electronic Frontier Foundation.
Cerf indicou que é mais complicado do que isso, no sentido em que os ficheiros em que se baseiam os servidores têm posteriormente de ser aprovados pela assinatura criptográfica da ICANN, caso contrário não funcionam.
A ICANN tem procedimentos em vigor para se proteger contra este tipo de “alterações arbitrárias”, disse Cerf, “independentemente do número de pedidos que sejam feitos”.
Já a retirada dos endereços IP russos seria como tirar o prego que mantém um quadro preso à parede, disse Mallory Knodel, diretora de tecnologia do Centro para a Democracia e Tecnologia, um grupo de peritos sedeado nos EUA.
Tal como o quadro deixaria de ter um lugar na parede para estar, também os sites russos desapareceriam da internet pois ficariam sem o seu lugar atribuído para se sentarem.
Isto também faria com que os smartphones, computadores e outros dispositivos ligados à internet na Rússia deixassem de conseguir aceder à internet em geral, uma vez que deixariam de ter endereços IP atribuídos que serviriam para identificar aqueles dispositivos numa rede global, disse Knodel.
É possível que a Rússia tenha a sua própria versão local da internet replicada, permitindo que os utilizadores de internet russos se liguem entre si durante um tempo.
Mas provavelmente a experiência estaria extremamente comprometida, a menos que a Rússia tivesse armazenado cópias de toda a internet em cache para poderem ser acedidas pelas pessoas, disse Knodel.
Mesmo perante esse cenário, a cópia de segurança local russa não incluiria os conteúdos futuros que estão constantemente a ser adicionados à rede global de internet.
“Na prática, acabaria por afetar todas as pessoas que se ligassem à internet na Rússia, mas não teria grande efeito sobre as instituições sistémicas verdadeiramente poderosas, como as forças armadas e o governo”, acrescentou.
“Estamos certos de que essa medida iria perturbar seriamente o acesso à internet por parte da população da Rússia”, alerta.
Rússia “desconectada com sucesso”
De acordo com o RBC, que cita fontes não identificadas no setor de telecomunicações, a Rússia “desconectou-se com sucesso” da internet entre 15 de junho e 15 de julho de 2021.
A iniciativa russa, a RuNet, visava testar “a capacidade de desconectar fisicamente a secção russa da Internet”.
Uma segunda fonte disse que o teste teve como objetivo “determinar se RuNet [uma espécie de ‘intranet’ nacional, projetada para garantir o funcionamento da infraestrutura de tecnologia] pode funcionar em caso de distorções externas, bloqueios e outras ameaças“.
Segundo o Moscow Times, uma fonte não identificada afirmou que os testes tinham sido “provisoriamente reconhecidos como bem-sucedidos”.
A empresa de telecomunicações estatal Rostelecom, as quatro grandes operadoras de telefonia móvel da Rússia e a proprietária da maior rede mundial de cabos de fibra ótica do país participaram nos testes de isolamento da Internet.
Estes testes devem ser realizados uma vez por ano, de acordo com uma lei assinada pelo Presidente Vladimir Putin em 2019, mas tiveram que ser adiados no ano passado devido à pandemia de covid-19.
O Kremlin confirmou os testes, indicando que a infraestrutura da Rússia deve ser preparada para sanções estrangeiras e cibercrime.
Em fevereiro de 2021, o ex-Presidente russo e vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, disse que os Estados Unidos retinham “direitos fundamentais de controle” da Internet, o que poderia resultar na desconexão da Rússia da Internet global “se algo extraordinário acontecer”, indicando ainda que o país poderia ser desconectado do sistema de pagamentos internacionais SWIFT.
“Tivemos até que criar nosso próprio sistema de transmissão de informações para que pudéssemos trocar mensagens eletrónicas caso isso aconteça de repente“, referiu.
Segundo a NEXTA, um órgão de comunicação social da Europa de Leste, a Rússia já começou (novamente) os preparativos para a desconexão da Internet global.
#Russia began active preparations for disconnection from the global Internet
No later than March 11, all servers and domains must be transferred to the #Russian zone. In addition, detailed data on the network infrastructure of the sites is being collected. pic.twitter.com/wOCdRqOJej
— NEXTA (@nexta_tv) March 6, 2022
“O mais tardar a 11 de março, todos os servidores e domínios devem ser transferidos para a zona russa. Além disso, estão a ser recolhidos dados detalhados sobre a infraestrutura de rede dos sites”, lê-se na publicação do Twitter.
Problema político e técnico
Para a Ucrânia, fazer com que a ICANN cumpra o seu pedido é um problema político e técnico.
A ICANN — sigla em inglês da Corporação para Nomes e Números Atribuídos na Internet — é uma das muitas instituições a nível global que ajudam a orientar e supervisionar o desenvolvimento da internet.
Funciona, em grande medida, com base em consensos, e os seus membros incluem não só governos, como também grupos da sociedade civil e peritos técnicos.
Durante anos, a ICANN tem vindo cuidadosamente a construir um papel para si mesma enquanto administradora apolítica das funções da internet.
Devido à sua estrutura e ao processo de tomada de decisão, não existe um único membro da ICANN que possa impor decisões.
Este modelo reflete o ecossistema extremamente complexo de empresas e organizações que fazem a gestão das infraestruturas técnicas da internet.
A Ucrânia enfrenta uma batalha política difícil, devido ao número de grupos que seria necessário persuadir.
Existe cerca de uma dúzia de operadores a gerir os chamados “servidores raiz”, os quais teriam de ser atualizados para expulsar a Rússia da internet, disse Stoltz.
E um plano controverso como o da Ucrânia não irá produzir um consenso entre os membros da ICANN. Mesmo que os representantes da ICANN decidissem implementar o plano da Ucrânia, bastaria que um ou dois membros decidissem noutro sentido para que todo o plano fosse por água abaixo.
A Ucrânia também está perante uma questão técnica por algumas das mesmas razões. A natureza da distribuição da internet significa que esta tem de se apoiar na concordância de todos os intervenientes.
“A nível técnico, não existe um centro da internet“, disse Stoltz. “Não existe um centro de comando. Não existe um botão que se possa pressionar para fazer com que todas essas coisas aconteçam”.
Temos igualmente a questão do direito internacional, segundo Runa Sandvik, investigadora de segurança digital.
“As Nações Unidas já declararam que a internet é um direito humano e afirmaram que impedir que as pessoas acedam à rede é uma violação dos direitos humanos e é contra o direito internacional”, escreveu Sandvik no Twitter.
The United Nations has previously declared the internet to be a human right, and said that disconnecting people is a human rights violation and against international law. 🇺🇦🇷🇺
— Runa Sandvik (@runasand) March 1, 2022
Mesmo que a Ucrânia conseguisse a anuência de todos, continuaria a ser uma ideia arriscada, disse Knodel.
Segundo Knodel, o plano obrigaria à quebra de algumas “funções verdadeiramente essenciais ao nível da autenticação e segurança” que estão atualmente enraizadas na internet. Isso poderia ser prejudicial para os russos que dependem destes recursos de segurança para a sua própria segurança, particularmente os dissidentes.
A Rússia e a China também têm estado ativamente a construir as suas próprias versões localizadas da internet, que poderiam ser controladas mais facilmente, disse Knodel.
Levar a cabo o plano da Ucrânia pode dar à Rússia aquilo que ela quer: uma população mais manipulável de utilizadores de internet sem acesso a informações do estrangeiro.
“A Rússia há muito que tenta descobrir uma forma de se desligar da internet global, e um dos principais entraves é o sistema global de nomes de domínio”, disse Knodel.