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“Tirou o preservativo sem me avisar”. Vários países discutem criminalizar o stealthing

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A possibilidade de criminalizar e até equiparar à violação o acto de remover o preservativo a meio das relações sexuais sem informar a parceira está a ser debatido em vários países, como a Austrália e os EUA. Houve já condenações históricas na Suíça e na Nova Zelândia.

Cindy tinha 30 anos quando, em 2016, teve um primeiro encontro com o homem que tinha conhecido no Tinder. Depois de os dois irem para sua casa depois de jantar, aquilo que Cindy esperava que fosse uma aventura de Verão rapidamente teve uma viragem negativa.

Ele tirou o preservativo sem me dizer a meio do sexo. Eu acabei por me deixar ir porque ele era mais velho e eu não queria arruinar o momento. Senti-me terrível depois”, revelou a administrativa ao New York Post.

E Sara também tem uma história parecida. A jovem identificada com este nome fictício num estudo de 2017, realizado pela advogada de direitos civis Alexandra Brodsky, disse ao parceiro que o uso de protecção não era negociável. “Eu criei um limite. Fui muito explícita”, afirma.

No entanto, Sara descobriu mais tarde que o homem com quem estava a sair há algumas semanas tinha removido o preservativo em segredo. “Acabei por falar com ele sobre isso mais tarde. Ele disse-me “não te preocupes com isso, confia em mim”. Não me esqueci disso, porque “ele já tinha provado que não merecia a minha confiança“, revela.

Uma universitária caloira, que usa o nome falso Rebecca, também detalhou a sua história a Brodsky, quando o namorado tirou o preservativo sem a avisar. A mulher lembra-se das preocupações que teve sobre uma possível gravidez ou transmissão de doenças e sobre a quebra de confiança no companheiro e recorda que o homem se recusou a ajudá-la a pagar a contracepção de emergência.

Mais tarde, já depois de ter terminado os estudos e quando estava a trabalhar numa linha de apoio a vítimas de violação, Rebecca ouviu relatos semelhantes ao seu, que começavam quase sempre com a frase “eu não sei se isto é violação, mas…

E para muitos, é, e Cindy, Sara e Rebecca estão longe de ser as últimas vítimas desta prática, conhecida como stealthing. De acordo com um estudo de 2017, 12% das mulheres entre 21 e 30 anos já tiveram um parceiro que removeu o preservativo a meio das relações sexuais sem o consentimento, enquanto outra investigação concluiu que 10% dos jovens rapazes admitiu já ter retirado a protecção sem avisar a parceira.

As preocupações sobre doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes também não são infundadas, já que um inquérito de 2019 concluiu que os homens que praticam stealthing têm uma probabilidade muito maior de estar infectados com uma DTS (uma taxa de 29,5% em relação a 15,1%) e que também têm uma probabilidade de causar gravidezes indesejadas de 46,7%.

Para além das preocupações com as consequências físicas, o stealthing deixa também marcas psicológicas nas vítimas, que têm dificuldade em confiar nos parceiros novamente e que se sentem humilhadas e desrespeitadas por verem a sua autonomia corporal ignorada.

“Senti-me violada e desiludida porque convidei alguém para o meu quarto para partilhar este momento pessoal e não consenti. Depois da última vez, fiquei emocionalmente desligada. Primeiro queria zangar-me e gritar, mas a desilusão esgotou-me… Agora só tento ter mais cuidado”, revela Adrianna ao New York Post, que já foi vítima de stealthing quatro vezes, todas com homens que conheceu em aplicações de namoro.

Uma jovem portuguesa também contou ao DN que teve uma experiência parecida quando dormiu com um amigo que tirou a protecção e teve de tomar a pílula do dia seguinte.

“A experiência foi horrível. As hormonas têm muitos efeitos e tive de fazer tudo sozinha. Ele não mostrou qualquer preocupação, não perguntou sequer como eu estava. Senti-me só e desprezada”, explica, dizendo que não aceita ter relações sem preservativo, que pedir para o usarem é um “direito” e que “negá-lo é violência”.

A psicoterapeuta Kathryn Smerling revela ao tablóide nova-iorquino que muitas vítimas sentem “muita vergonha” e que se perguntam como é que deixaram isso acontecer. “Algumas têm de aprender a falar sobre o que lhes aconteceu antes se sentirem confortáveis novamente a ter sexo com alguém”, explica, dizendo que notou um aumento nas queixas nos últimos anos.

O mesmo inquérito que traçou o perfil dos homens mostrou também que estes tendem a ser mais hostis com as mulheres, uma tese que foi também suportada no estudo de Brodsky, que detalhou fóruns online onde homens dão dicas sobre como tirar o preservativo sem serem apanhados e justificam o acto dizendo que é um “impulso natural” e que têm o direito a “espalhar a semente”.

O estudo de Alexandra Brodsky marcou uma mudança na forma como o stealthing é encarado, que é ainda visto por muitos como algo inofensivo. A autora estudou as molduras penais sobre o acto, que descreveu como “adjacente à violação” e disse que pode ser entendido como uma forma de “transformar o sexo consensual e não consensual” porque as circunstâncias mudam sem a aprovação de ambas as partes.

Aos poucos, a lei está a acompanhar a tendência

Foi para combater a prevalência do stealthing que a deputada na Assembleia da Califórnia Cristina Garcia apresentou recentemente uma proposta de lei que já foi aprovada nas duas câmaras da legislatura do estado norte-americano e que torna a remoção do preservativo sem consentimento uma ofensa civil. A lei está agora na secretária do governador Gavin Newsom, que tem até 10 de Outubro para a assinar.

Caso avance, a Califórnia vai tornar-se o primeiro estado nos EUA a reconhecer o stealthing como uma violação à lei. A legislação permite às vítimas processar os homens que retirem os preservativos pelas acusações de abuso sexual e exigir indemnizações. Os estados do Wisconsin e do Nova Iorque estão a ponderar leis semelhantes.

Já há vários anos que Garcia estava a tentar aprovar legislação sobre o stealthing. Em 2017, a deputada introduziu uma lei que criminalizaria a práctica e que poderia levar à prisão dos homens, mas a proposta não passou, escreve o Washington Post.

Os analistas na altura disseram que o stealthing já poderia ser considerado um abuso sexual em delito, apesar de não estar especificado no código criminal na Califórnia.

Contudo, seria muito difícil conseguir condenações porque teria de se provar que o preservativo não saiu acidentalmente, pelo que a designação de ofensa civil pode fazer com que seja mais fácil as vítimas conseguirem justiça devido às exigências menos restrictas nas provas.

Brodsky mostrou-se contente sobre a proposta e revelou ao Washington Post que a lei pode ajudar as vítimas. “Acho que muitas sobreviventes vão sentir-se ouvidas pelo facto da legislatura estadual concordar que o que lhes aconteceu foi errado”, afirma.

A Suíça também fez manchetes mundiais em 2017 quando um tribunal no país condenou um homem a 12 meses de prisão suspensa por violação depois deste ter removido o preservativo sem permissão.

O caso de Julian Assange foi também muito mediático, depois do fundador do WikiLeaks ter sido acusado de violação por ter alegadamente rompido o preservativo propositadamente a uma de duas mulheres suecas com quem terá tido relações sexuais.

Em Abril deste ano, houve também uma condenação histórica na Nova Zelândia, com um homem a receber uma pena de três anos e nove meses de prisão por ter tirado a protecção durante as relações com uma trabalhadora sexual num bordel em 2018. A mulher pediu ajuda ao gerente do estabelecimento e foi chamada a polícia.

O Partido Liberal da Austrália, está também a tentar criminalizar o stealthing, propondo uma mudança na legislação que abranja explicitamente a práctica. “Sexo sem consentimento é agressão sexual. E a agressão sexual é crime. No fim de contas, retirar o preservativo sem consentimento é violação“, defendeu a líder liberal Elizabeth Lee.

E em Portugal? Segundo revela Rita Mota e Sousa, magistrada do Ministério Público, ao DN, o acto pode já ser penalizado com a lei existente.

“A pessoa quereria, consentiria naquela relação sexual se soubesse que não havia preservativo? É importante que haja tipicidade na lei penal, para que as pessoas saibam se o que fazem é crime ou não. Pode-se entender que a pessoa, sendo ludibriada, está a ser constrangida a um acto que não consentiu. E nesse sentido acho que o stealthing cabe na actual letra da lei. Porque a relação sexual tem de ser consentida no todo“, explica.

Mas as opiniões dividem-se, já que a professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite revela ao mesmo jornal que a explicitação tem de ser acrescentada à actual legislação nº 164 do Código Penal [violação], porque o acto pode não ser penalizado com a actual redacção.

Adriana Peixoto, ZAP //

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4 Comments

  1. Esta questão leva-me mais a questionar o tipo de parceiros escolhidos, a falta de confiança, de conhecimento dos mesmos. O ato sexual deveria ser um ato consentido, pensado e refletido.

    • E em muitos países devidamente contratualizado, mediante assinaturas reconhecidas no notário, detalhando todo o tipo de práticas consentidas. É que algumas no dia seguinte lembram-se que afinal não queriam algumas coisas.

    • Na mouche, Maria. Bravo. Ja vomito a hipocrisia politicamente correcta. Todas as referencias falam de sexo casual com recurso a apps tipo tinder. Se mulheres – ou homens – querem poder ter confianca num parceiro com quem vao ter sexo, talvez devessem usar o bom velho metodo de se conhecerem, namorar, ver se de facto tem alguem em quem possam confiar. Que grande admiracao que sexo casual por encomenda com desconhecidos, resulte em experiencias com pessoas que se estao nas tintas e que so’ querem O MESMO, ou seja, sexo . Sim, lamento o sofrimento de qualquer ser humano, mas parecem meninas mimadas que querem brincar com o fogo e depois choram porque, que horror, queimam-se.

  2. Mais uma para a já vasta discussão de violações sexuais, e que tal castrar todos os homens e mulheres para pormos fim de uma vez por todas a tais debates? Não tardará que a condenação da prática de sexo seja condenada!

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