Morreu este sábado, aos 77 anos, a escritora e investigadora Maria Isabel Barreno, co-autora da obra “Novas Cartas Portuguesas”, uma das mais perseguidas pelo regime do Estado Novo – no processo das “Três Marias” – que abriu caminho para o debate sobre a igualdade de género.
O falecimento foi confirmado à Lusa pela escritora Maria Teresa Horta, sua amiga e co-autora, com Maria Velho da Costa, das “Novas Cartas Portuguesas”.
Maria Isabel Barreno será cremada no domingo, às 17h, no cemitério dos Olivais.
Nascida em Lisboa a 10 de julho de 1939 e licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a feroz defensora dos direitos das mulheres ficará para a história como uma das “Três Marias”, nome por que ficou conhecido o processo em que foram julgadas, durante o Estado Novo, pela escrita da obra de alegado “teor pornográfico”, publicada em 1971 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, e Maria Velho da Costa.
Ao fim de mais de dois anos, o julgamento, acompanhado de perto pela imprensa internacional, terminou com a absolvição das três escritoras, já após a Revolução de 25 de Abril de 1974.
A obra passou a ser encarada não só como um tratado sobre os direitos das mulheres em Portugal mas, mais que isso, como “um libelo contra todas as formas de opressão“, como a descreveu a escritora Ana Luísa Amaral em 2010, quando a obra foi reeditada pela Sextante, com anotações suas.
“Nas Novas Cartas que as três Marias escreveram anonimamente, diversas vozes falam da condição da mulher, da sua submissão à ordem patriarcal e burguesa, de violência doméstica e de género, de aborto, violação, incesto, pobreza, censura, e de expressão sexual feminina”, escreveu o Público a propósito da reedição da obra em Portugal.
Libertação das Mulheres
Maria Teresa Horta recorda a amiga como “uma mulher excepcional, inteligentíssima, muito culta e muito leal“. “Foram muitos anos desde que nos encontrámos a primeira vez e que eu lhe fiz uma entrevista para o jornal A Capital, para o suplemento literário, que era coordenado por mim”, acrescentou.
“Não é só um escritor, é um escritor com quem eu escrevi, e uma pessoa quando escreve com alguém é para sempre, é eterno, não há nada a fazer. A nossa eternidade é que, pelos vistos, como se vê pela Isabel, é muito curta”, concluiu.
Juntas, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno fundaram também o Movimento de Libertação das Mulheres.
A escritora relembrou o livro de Maria Isabel Barreno “A Morte da Mãe” como uma obra muito importante que devia ser reeditada rapidamente Escrito ao longo da década de 1970, e publicado em 1979, é um importante estudo sociológico e filosófico sobre a evolução histórica da situação da mulher na sociedade.
Zeferino Coelho, editor da Caminho que reeditou a obra em 1989, considera que é o melhor livro da escritora, onde Maria Isabel Barreno faz “uma revisão de toda a problemática da mulher com muita inteligência” e com “uma escrita que serve essa inteligência”.
“Voz ativa”
Maria Isabel Barreno trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, foi jornalista e Conselheira Cultural para o Ensino do Português em França e publicou 24 títulos, entre romance e investigação na área da Sociologia.
Recebeu diversas distinções, entre as quais o Prémio Fernando Namora, pelo romance “Crónica do Tempo” (1991), e o Prémio Camilo Castelo Branco e o Prémio Pen Club Português de Ficção, pelo livro de contos “Os Sensos Incomuns” (1993), e em 2004 foi feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
“Vozes do Vento”, sobre a história dos antepassados do seu pai em Cabo Verde, foi o último romance que publicou, em 2009, após uma pausa de 15 anos na escrita durante a qual desenvolveu atividades noutros campos artísticos, nomeadamente as artes plásticas, com várias exposições de desenho e tapeçaria. Depois, em 2010, editou ainda o livro de contos “Corredores Secretos (seguido de “Motes e Glosas”)”.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sustentou que a obra de Maria Isabel Barreno, escritora que faleceu este sábado, aos 77 anos, foi “muito além” da co-autoria das “Novas Cartas Portuguesas”, no início da década de 1970.
“Tomando de empréstimo o modelo das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, mas discutindo o mundo português contemporâneo, o livro era a expressão de uma mudança de mentalidades e de uma resistência crítica que a censura mal pôde conter”, recordou o Chefe de Estado.
“Mas a obra de Isabel Barreno vai muito além das Cartas”, salienta o Presidente da República, apontando os romances, novelas e contos da autora, que, na sua opinião “procuram sempre uma forma de conhecimento da realidade portuguesa” com “conhecimento psicológico e sociológico, empírico e filosófico, em contexto quotidiano e doméstico ou em registo fantástico”.
O Ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, destacou a “voz ativa” de Maria Isabel Barreno na defesa dos direitos das mulheres.
Numa nota de pesar divulgada pelo gabinete do ministro da Cultura, pela morte de Maria Isabel Barreno, o responsável recordou que a escritora nasceu em 1939, “num regime opressor”.
“A riqueza do seu pensamento e o rigor dos seus princípios em muito contribuíram para termos hoje uma sociedade mais justa, livre e igualitária”, salienta Luís Filipe Castro Mendes na nota de pesar.
AF, ZAP com Lusa