D. Manuel Clemente encobriu denúncia de abusos. O que dizem a lei e as regras da Igreja Católica?

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patriarcadodelisboa / Flickr

Cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente

Desde 2020 que as regras da Igreja Católica são explícitas e obrigam os bispos a informar as autoridades de denúncias de abusos que lhes cheguem. No plano civil, caso o padre tenha cometido mais crimes que ainda não prescreveram, o Cardeal-Patriarca pode enfrentar um processo por omitir o caso.

Na sequência da revelação de que o Cardeal-Patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente soube de uma denúncia de abusos sexuais a um menor na década de 90, mas não a comunicou às autoridades nem afastou o padre das funções, questiona-se agora o que pode a Igreja Católica fazer.

De acordo com o Observador, será muito difícil a Igreja punir D. Manuel Clemente, visto que as suas normas internas que responsabilizam os bispos pela ocultação dos abusos são muito recentes e provavelmente não se aplicam ao caso em questão. O Cardeal também deverá dificilmente punido no plano civil por omissão porque o crime em causa já prescreveu.

No caso em questão, a mãe da vítima denunciou o caso a D. José Policarpo, antecessor de D. Manuel Clemente, e a própria vítima falou mais tarde com o actual Cardeal-Patriarca. O padre exercia funções em duas paróquias na altura da denúncia e foi afastado dessas paróquias em 2002, tendo sido colocado como capelão, um papel mais discreto mas onde ainda tinha contacto com o público.

Enquanto capelão, o sacerdote criou uma associação privada que funcionava como uma paróquia paralela. A associação não tinha qualquer ligação formal com a Igreja Católica, mas a Igreja sabia da sua existência.

Segundo as normas definidas pelo Papa Francisco que entraram em vigor em 2020, os bispos são obrigados a comunicar as suspeitas de abusos que lhes chegam, mesmo que a lei do seu país não o exija e que os casos possam já ter prescrito.

Para além de fazer justiça à vítima, estas regras afirmam o compromisso da Igreja com a proteção de “outros menores do perigo de novos atos delituosos“. Dado serem de 2020, as normas não abrangem D. José Policarpo, que entretanto faleceu.

No entanto, a actuação de D. Manuel Clemente levanta mais dúvidas, visto que este foi informado do caso pela própria vítima já depois de uma cimeira de Fevereiro de 2019, onde o Papa Francisco deixou clara a sua postura a favor da denúncia. Apesar de o documento ainda não estar em vigor, já se conhecia o seu conteúdo.

A carta apostólica Vos Estis Lux Mundi, promulgada em Maio de 2019, também deve ser tida em conta porque nela o Papa fecha uma lacuna que existia até então e determina a possibilidade de a justiça eclesiástica responsabilizar não só os padres abusadores, mas também os bispos e outros elementos da hierarquia eclesiástica pelo encobrimento dos abusos.

O Patriarcado de Lisboa não esclarece qual foi a data concreta em que ocorreu a vítima se reuniu com D. Manuel Clemente, não sendo possível saber quais as normas que já estavam em vigor nessa altura e se o Patriarca as cumpriu ou não.

Uma questão que complica a determinação sobre a atuação de D. Manuel Clemente é que a vítima pediu que o caso não fosse tornado público. Mesmo assim, o Cardeal podia ter denunciado o padre às autoridades sem revelar quem era a vítima, algo a que a lei canónica obriga desde 2020.

Esta é também uma das recomendações da comissão independente que está a elaborar o relatório sobre os abusos em Portugal, já que é muito provável que os padres tenham mais do que uma vítima e que haja casos de abusos que ainda não tenham prescrito e que possam ser investigados pelas autoridades.

Em segundo lugar, o Patriarca poderia ter suspendido o sacerdote das funções de capelão, visto que estas ainda implicam um contacto com crianças e jovens. Apesar de não ter uma jurisdição direta sobre a associação privada, D. Manuel Clemente poderia ter suspendido o padre do exercício do sacerdócio, o que o impediria de celebrar missas ou sacramentos também dentro da associação.

No plano civil, o advogado Miguel Matias lembra que se o caso não tivesse prescrito, o bispo D. Manuel Clemente poderia ser indiciado pelo crime de abuso sexual por omissão. Caso a Polícia Judiciária investigue o padre e se venha a saber que houve mais vítimas e que esses crimes ainda não prescreveram, o actual Patriarca pode mesmo vir a enfrentar um processo por ter ocultado as denúncias.

Até agora, a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica já reencaminhou 17 queixas das mais de 300 que já recebeu para o Ministério Público. Em declarações à Renascença, a Procuradora-Geral da República explica que foram abertos 10 inquéritos e que quatro das queixas  foram arquivadas.

Adriana Peixoto, ZAP //

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