Ucranianos “civilizados” e árabes “terroristas”. A guerra na Ucrânia deixa a nu os preconceitos do Ocidente

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Atef Safadi / EPA

A cobertura mediática ao conflito da Ucrânia tem deixados claros os preconceitos que ainda dominam as redacções dos media ocidentais perante circunstâncias semelhantes na Ucrânia e em países como a Etiópia ou o Iraque.

Há mais de dois meses que é comum vermos a guerra na Ucrânia a abrir os noticiários televisivos e a dominar as manchetes dos jornais.

Apesar da importância geopolítica do conflito e do potencial de escalada para uma guerra mundial — sem esquecer o impacto nos preços da energia e nas exportações de cereais — a atenção mediática dada ao conflito tem também levantado questões sobre os critérios que são usados nas redacções, visto que há outros conflitos igualmente catastróficos que não recebem um décimo da atenção dos jornalistas.

Esta diferença não passou despercebida ao director da Organização Mundial de Saúde que é oriundo da região de Tigré, na Etiópia, que há mais de um ano é o epicentro de uma violenta guerra civil.

“Toda a atenção prestada à Ucrânia é muito importante, é claro, porque tem impacto em todo o mundo, mas não é dada sequer uma fracção dessa atenção a Tigré, ao Iémen, ao Afeganistão, à Síria e a todos os outros. Tenho de ser direto e honesto, o mundo não presta o mesmo grau de atenção às vidas dos negros e às dos brancos”, lamentou Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Para além da diferença na quantidade da cobertura mediática, há ainda muitas contrastes nas formas como os lados do conflito são retratados. Nos meios de comunicação ocidentais têm sido várias as referências ao choque causado pelo início de uma guerra num país “civilizado”, insinuando que outras regiões massacradas por conflitos não são tão dignas ou merecedoras da paz como a Ucrânia.

O repórter Charlie D’Agata, da CBS News, causou uma enorme polémica quando relatou a realidade que estava a testemunhar enquanto enviado especial à Ucrânia. “Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão que está a ser destruído pelo conflito há décadas. Kiev é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, afirmou.

Os comentários de D’Agata incendiaram uma enorme onda de indignação nas redes sociais, especialmente entre os utilizadores oriundos do Médio Oriente, que estamparam a expressão “civilizado” em t-shirts e usaram-na em hashtags.

“As atrocidades começam com as palavras e a desumanização. As atrocidades cometidas sobre milhões no Médio Oriente, alimentadas por ditadores que são rotulados como reformistas no Ocidente. O subtexto racista: as vidas dos afegãos, dos iraquianos e dos sírios não interessam, por isso são inferiores”, escreveu a jornalista palestiniana Rula Jebreal no Twitter.

“Isto nem sequer é a OANN ou a Fox. Isto é supremacia branca óbvia na CBS. Desumanização absolutamente nojenta das pessoas de cor”, condenou ainda o advogado Qasim Rashid. Entretanto, D’Agata pediu desculpas.

Mas este caso não é o único. Num programa da BBC, o ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia, David Sakvarelidze, confessou estar emocionado por ver “pessoas europeias, com cabelo loiro e olhos azuis a serem mortas todos os dias pelos mísseis de Putin”, ao que o jornalista respondeu que entende e respeita “a emoção”.

Na Sky News, foi feita uma transmissão em directo que mostra os ucranianos a aprender a usar esferovite para fazer cocktails molotov que depois usam contra as tropas russas, com o repórter a descrever a situação como “extraordinária”.

“Se isto fosse feito por palestinianos, afegãos ou outros povos que resistem à opressão, seria terrorismo. E durante a era anti-apartheid de Mandela, também foi caracterizado como terrorismo. Para europeus que enfrentam situações semelhantes, é resistência. A duplicidade do Ocidente não tem limites”, criticou o político queniano Billow Kerrow no Twitter.

Já na ITV, um jornalista mencionou as acusações de que a Rússia estará a usar bombas de vácuo — armas incrivelmente potentes cujo uso é condenado pelas organizações de defesa dos direitos humanos — na Ucrânia, lembrando que os Estados Unidos também usaram no Afeganistão, mas considerando que “a ideia de que estão a ser usadas na Europa é de revirar o estômago“.

Para Imraan Siddiqi, director da associação CAIR Washington, que apoia muçulmanos no estado norte-ameriano, estas palavras têm um significado óbvio: “essas bombas estavam destinadas a pessoas de cor, pessoal”.

Em França, o canal BFM TV, que é o canal de notícias de cabo mais visto no país, o jornalista Philippe Corbe fez questão de sublinhar que “não estamos a falar de sírios a fugir de bombas do regime apoiado por Putin”, mas sim de “europeus a fugir em carros parecidos com os nossos para salvarem as suas vidas”.

O impacto da desigualdade mediática

Estas assimetrias acabam por ter efeitos na prática, como revelam os investigadores Martin Scott, Kate Wright e Mel Bunce, no The Conversation, e ajudam a explicar as diferenças no apoio que as campanhas humanitárias recebem.

Por exemplo, no caso dos apelos da ONU, o Iraque e o Líbano receberam 92% e 84% dos fundos pedidos, respectivamente. Já a Venezuela e o Sudão do Sul ficaram bem atrás (24% e 10%).

A cobertura mediática também cria pressão no poder político e na sociedade para responder a uma crise. “A explosão em Beirute é um bom exemplo disto. Foi a cobertura mediática que alimentou a alocação de mais ajuda humanitária”.

Actualmente, a resistência ucraniana está a ser apoiada com inúmeras campanhas solidárias. Até em planos que costumam ficar de fora da política, como o desporto ou a cultura, os órgãos reguladores estão a sancionar atletas russos e a impedi-los de competir e as escolas estão a cancelar o ensino de obras de artistas russos.

No entanto, quando são sugeridas medidas semelhantes noutros conflitos, como no caso do movimento BDS (Boycott, Divestment and Sanctions) contra Israel, o apoio do poder político a este tipo de sanções já está longe de ser tão consensual e os seus apoiantes são frequentemente acusados de anti-semitismo.

“O que é triste desta vez é que os comentários ofensivos são tão casuais e espontâneos que revelam o preconceito existente, algo que esperaríamos que um jornalista a cobrir um evento internacional não tivesse”, revela Hoda Osman, presidente da Associação de Jornalistas Árabes e do Médio Oriente, à CNN.

As diferenças de tratamento notam-se também nas políticas de acolhimento dos refugiados na Europa. Na Hungria e na Polónia — dois países com governos de extrema-direita que já entraram numa rota de colisão com a União Europeia devido à sua recusa em receber refugiados sírios — as políticas de asilo deram uma volta de 360 graus e são bem agora mais acolhedoras para os ucranianos.

Para combater este problema, a associação de ajuda humanitária internacional CARE recomenda aos meios de comunicação que encontrem formas criativas de dar atenção a crises que foram ofuscadas pela pandemia ou agora pela guerra na Ucrânia. No entanto, os cortes nos orçamentos e nas receitas publicitárias são ainda obstáculos neste caminho. Resta-nos trabalhar para fazermos melhor.

Adriana Peixoto, ZAP //

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12 Comments

  1. Sem lugar a comentários! Afinal estamos no ocidente! Os defensores dos direitos humanos e da democracia desapareceram…

    • Hein…?

      Critica a ausência de comentários quando o seu comentário, por não acrescentar coisa nenhuma, mais valia estar (também ele), ausente!

  2. Pois, ninguém quer saber dos tiroteios e das pessoas esfoladas e apresentadas como avisos em postes, nas favelas do México, Honduras, Brasil, das mutilações por roubo no Iámen, UA, Egito, Afeganistão, das execuções a tiro de artilharia na Coreia do Norte. Ou seja países recomendáveis, que precisam do mesmo tratamento como aconteceu na Ucrânia. Aliás, é mesmo comparável…

    Acho que estamos a falar um país a entrar por dentro de outro, e arrebentar aquilo tudo, alegando que só destrói alvos militares, certo?

    • Estes comentários patrocinados por essas “autoridades” que reclamam o mesmo tratamento que a Ucrânia estão em sintonia com os mesmos discursos veiculados pelos media controlados pelo Kremlin, apostados em cansar a opinião pública e em querer passar uma imagem negativa do Ocidente, como se o Ocidente tivesse culpa de todos os males do Mundo.
      É um discurso naive e populista ao estilo da contra cultura, essa pandemia, que visa desestabilizar a ordem mundial para abrir portas para uma nova ordeml não necessariamente melhor.
      Acordem para este tipo de notícias e comentários sejam eles nos grandes meios de comunicação seja nas redes sociais.
      A paz e a democracia está sob ataque e a maioria de nós nem se apercebe pois a política é aborrecida e nem de longe tão recreativa como o BIG BROTHER.

  3. Este artigo não diz nada de novo. Faz parte da natureza humana apoiar os que estão mais próximos sejam estes familiares, amigos, cidadãos do mesmo bairro, cidadãos do mesmo país, da mesma cultura, religião, etc.
    Se fossemos máquinas completamente lógicas então sim este artigo faria sentido a apontar a falta de lógica. Só que somos humanos e como tal temos um elemento tribal de apoio aos que são parecidos connosco e que vivem perto.
    Viram as feministas a se mobilizarem para apoiar as mulheres afegãs quando os talibãs conquistaram o poder?
    Viram algum movimento dos “bons” a tentar intervir no Ruanda para evitar o massacre de 500 mil pessoas?

    O artigo está errados ao dizer “preconceitos dos media ocidentais” o correto seria dizer “preconceitos dos seres humanos”… Será preciso combater essa lógica tribal, mas também é isso que faz de nós humanos (amamos mais os que estão mais próximos do que os estão mais longe). [proximidade: familiar, geográfica, cultural, religiosa, etc.]

  4. Um bom artigo sobre a falsa imparcialidade e objetividade dos jornalistas ocidentais. Nada que não se soubesse já, a novidade é podermos ler um artigo destes escrito por uma jornalista portuguesa em Portugal. É preciso alguma coragem, arriscou o emprego!
    Faltam jornalistas como esta jovem, espero que mantenha a qualidade e independência que mostrou a escrever este texto.

    • Quantos jornalistas não estão dependentes da “his master voice”?, em Portugal e no Mundo?, o jornalismo passou do 4º poder a um poder de 4ª classe.
      Poucos são os que levantam as “lebres”, jornalismo de investigação já pouco se vê.

  5. Não é de facto novidade nenhuma. Perfeitamente de acordo com Rui Rodrigues.
    O que não quer dizer que, como ocidental, não deixe de ficar impressionado com as atrocidades que os “outros” sofrem. Principalmente porque são vítimas de guerras civis eternas, governantes tiranos ou sociedades bem mais preconceituosas do que a nossa (que de modo nenhum é perfeita).
    Sobre o facto de nos preocuparmos mais com os que consideramos mais próximos, leiam o Eça em “Cartas Familiares e Bilhetes de Paris”.

  6. Esta palhaçada de se considerar racismo a preocupação que temos com pessoas que nos são mais próximas é de ficar sem palavras.
    Quando foi o massacre de Timor-Leste, com o referendo da independência, que países africanos ou americanos se preocuparam com o assunto (exceptuando o Sérgio Vieira de Mello)? Portugal e a Austrália andaram em cima do acontecimento porque tinham proximidade, fosse histórica-política ou geográfica-económica.
    Além disso, se os meios de comunicação são ocidentais é natural que vejam a questão do nosso ponto de vista. A Al-Jazeera não faz as mesmas reportagens que a BBC…

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