Caso se mantenha até ao final do ano o crescimento da receita do IRS e do IVA registado até outubro, não haverá em 2016 devolução da sobretaxa de IRS, segundo a simulação apresentada hoje na página da Administração Tributária (AT).
De acordo com a AT, o Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares (IRS) cobrado até outubro atingiu os 10.411 milhões de euros e o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) arrecadado no mesmo período correspondeu a 12.208 milhões de euros, totalizando os 22.619 milhões de euros nos dois impostos.
Estes 22.619 milhões de euros arrecadados com o IRS e com o IVA representam um aumento de 3,5% face ao mesmo período de 2014, abaixo dos 3,7% previstos no Orçamento do Estado para 2015 e que é o crescimento que terá de ser ultrapassado para que haja alguma devolução da sobretaxa em 2016.
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais admitiu ao Parlamento que possa ter sido criada a perceção de uma promessa com as previsões do crédito fiscal da sobretaxa do IRS, negando “qualquer empolamento” da receita de IRS e IVA em agosto.
Na comissão parlamentar de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa, na qual está a ser ouvido, Paulo Núncio recusou que a redução da previsão da devolução da sobretaxa do IRS de 35,3% em agosto para 0% em outubro se deva ao “empolamento artificial da receita” ou por via de uma “intervenção hipotética e imaginária” destes impostos pelo Governo, no mês anterior às eleições legislativas.
“No entanto, admito que a metodologia que foi utilizada para a comunicação mensal do crédito fiscal possa ter contribuído para criar a perceção errada de que se tratava de uma previsão de crédito fiscal para o final do ano ou mesmo uma promessa. Nunca foi essa a intenção do Governo”, afirmou o secretário de Estado.
Reembolsos do IVA e marketing político explicam não devolução da sobretaxa
Os fiscalistas contactados pela Lusa consideram que a previsão de devolução da sobretaxa tem vindo a cair devido à desaceleração económica, alertando que há fatores contraditórios, e não afastam a possibilidade de haver algum aproveitamento político dos dados.
A sobretaxa de 3,5% em sede de IRS foi uma das medidas incluídas no Orçamento do Estado para 2015 (OE2015), que introduziu pela primeira vez a possibilidade de haver uma devolução parcial ou total deste imposto se as receitas arrecadas em IRS e no IVA excedessem as previsões.
Na execução orçamental até agosto, o Governo admitia devolver no próximo ano 35,3% da sobretaxa de IRS paga em 2015, mas, quando foi conhecida a execução orçamental até setembro, essa previsão caiu, antecipando o executivo a restituição de apenas 9,7% do valor pago a título de sobretaxa.
A Direção-Geral de Orçamento (DGO) divulga esta quarta-feira a execução orçamental até outubro, esperando-se que o Governo atualize a projeção para a devolução da sobretaxa, sendo que o Jornal de Negócios noticiou na semana passada que não deverá haver lugar a qualquer restituição.
Questionados sobre se houve aproveitamento político quanto aos dados da devolução da sobretaxa, os fiscalistas contactados pela Lusa não afastaram essa possibilidade, mas afirmaram que há fatores contraditórios que explicam a evolução da receita de IRS e do IVA ao longo do ano.
“Não excluo obviamente essa hipótese. Provavelmente, todos os governos tiveram alguma tentação, mais tarde ou mais cedo, para poderem abrilhantar um pouco as receitas líquidas dos impostos“, disse Rogério Fernandes Ferreira.
Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, por seu lado, afirmou que, “evidentemente, há sempre uma gestão política destes dados”, reiterando que, “com certeza que, se os dados são mais favoráveis, o Governo utiliza a seu favor esses dados; e, se os dados são desfavoráveis, provavelmente não os divulga”.
Também o fiscalista da PLMJ Miguel Reis disse que “foi marketing político da parte do Governo” e, no mesmo sentido, o fiscalista Pedro Amorim entende que “o ritmo [de devolução potencial da sobretaxa] nunca abrandou”, acrescentando que “foi artificialmente criado”.
Rogério Fernandes Ferreira, advogado e antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, explica que o IRS é um imposto “relativamente regular”, considerando que a receita pode estar a cair devido às alterações introduzidas pela reforma que entrou em vigor este ano e que fez com que haja “um maior número de famílias abrangidas por um quociente mais abrangente, o quociente familiar”.
Além disso, a quebra das receitas do IRS “pode explicar também algum decréscimo na atividade económica, nomeadamente nos profissionais liberais”, uma vez que, “se houver menos serviços prestados ao nível da categoria B [trabalhadores dependentes], isso também tem efeitos em sentido negativo no IRS”.
Já no que se refere ao IVA, Rogério Fernandes Ferreira entende que “há aspetos contraditórios”, sublinhando que a introdução da faturação eletrónica e um maior controlo dos reembolsos por parte da Administração Fiscal “podem ter explicado um aumento da receita”.
Em sentido contrário, destaca que “o IVA é um bocado um termómetro fiscal” para a atividade económica, o que faz com que as receitas deste imposto “respondam imediatamente ao evoluir da atividade económica”, que abrandou no terceiro trimestre.
“Também um menor nível de reembolsos implica alterações na própria receita”, afirmou o fiscalista.
Nesta matéria também Pedro Amorim considerou que, no atual quadro legislativo, “é muito fácil” ao Governo “parar dezenas ou centenas de milhões de euros em reembolsos”, recordando que “a manipulação dos reembolsos do IVA é uma coisa muito antiga“.
“Lembro-me de que, no tempo em que a doutora Manuela Ferreira Leite era ministra das Finanças, em dezembro, pararam os reembolsos para conseguir atingir o défice”, afirmou Pedro Amorim, concluindo que, “artificialmente, de propósito ou não, há uma suspeita forte” de que a devolução da sobretaxa tenha sido usada para obter ganhos políticos antes das eleições legislativas.
Tanto a Unidade Técnica de Apoio Orçamental como o Conselho de Finanças Públicas já alertaram para a quebra dos reembolsos do IVA, admitindo que pode estar a aumentar a receita arrecadada.
Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, por seu lado, defendeu que “o mecanismo [de devolução] da sobretaxa não consubstancia até ao final do ano nenhuma promessa por concretizar”, uma vez que “os valores só se tornam definitivos depois de 31 de dezembro de 2015”.
Para o fiscalista, “esta discussão política que gira em torno de saber se vai ser ou não devolvida a sobretaxa é algo que é potencial até 31 de dezembro de 2015 e, até lá, é pura especulação“.
Novembro “é determinante” porque “pode fazer crescer os valores de devolução da sobretaxa acima do zero”, afirmou Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, sublinhando que é o mês em que ocorrem os últimos pagamentos por conta do ano.
“Provavelmente, à data do final de novembro, não vai haver devolução da sobretaxa, mas esses valores ainda estão em aberto”, resumiu.
/Lusa