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Depois de Guido, centenas de argentinos acham que podem ser bebés desaparecidos

TV Pública - Argentina

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A sede das Avós da Praça de Maio em Buenos Aires nunca esteve tão movimentada nos últimos anos. Os seus militantes estão a receber um número recorde de telefonemas de pessoas que afirmam ter dúvidas sobre a sua própria identidade, suspeitando que podem ser um dos “bebés roubados” nos anos da ditadura militar argentina.

Algumas das Avós estão a a chamar a este fenómeno o “efeito Guido“.

A semana passada, a ativista de direitos humanos Estela de Carlotto reencontrou o seu neto perdido, Guido, pela primeira vez desde que tinha sido levado pela junta militar, no fim da década de 1970.

O mês passado, Guido procurou a organização para fazer um teste de DNA, porque tinha dúvidas sobre a sua identidade.

Depois de fazer o exame, o professor de música, de 36 anos, que foi criado por uma família de camponeses e batizado com o nome de Ignacio Hurban, descobriu a verdade sobre as suas origens.

“Estava em casa, a tocar piano, beber chá e comer doces quando recebi o telefonema. Eles disseram-em que tinham os resultados… E que eu era o neto de Estela de Carlotto! Estou tão comovido, tudo aconteceu tão rapidamente, mas é maravilhoso e mágico”, disse Guido, sentado ao lado da avó durante uma conferência de imprensa.

“Estou confortável com a verdade que em chegou, estou feliz”, acrescentou Guido.

Impacto

Os militantes das Avós da Praça de Maio geralmente recebem 10 a 40 telefonemas por dia de pessoas que têm dúvidas sobre as suas próprias identidades.

Mas, um dia depois de Ignacio Hurban ter descoberto que, na verdade, era Guido, neto de Estela de Carlotto, começaram a receber tantas ligações que tiveram que contratar mais funcionários.

O impacto foi muito maior do que qualquer uma das nossas campanhas – e os nossos telefones continuam a tocar”, disse a ativista de 95 anos Rosa Roisinblit à BBC.

“Espero que mais jovens como Guido venham até a nós, acho que isto vai encorajá-los”, acrescentou.

“Estamos satisfeitas que Guido nos tenha encontrado, ele veio até nós, foi uma missão cumprida. Mas ainda há trabalho a fazer.”

Rosa conseguiu encontrar o seu neto, Guillermo, em 2000.

Desde então ela dedica-se a procurar outras crianças sequestradas durante a época da história argentina que ficou conhecida como “Guerra Suja”.

Edgardo E. Carbajal / Wikimedia

O ditador argentino Jorge Rafael Videla (esq., em 1976), morreu na prisão em 2013

O ditador argentino Jorge Rafael Videla (esq., em 1976), morreu na prisão em 2013

A Guerra Suja

Em 1976 uma junta militar liderada pelo general Jorge Rafael Videla tomou o poder na Argentina. Os oposicionistas do regime foram perseguidos no que ficou conhecido como a “Guerra Suja”. Milhares de pessoas desapareceram.

Dois anos depois a Argentina venceu o Campeonato do Mundo de Futebol 1978, que decorreu no país, com pouco conhecimento da comunidade internacional sobre as agressões do governo argentino.

Em 1981 o general Leopoldo Galtiere tornar-se-ia o líder do regime militar.

No ano seguinte, a Argentina ocupa temporariamente as ilhas Malvinas, mantidas pelos britânicos, envolvendo-se numa guerra com o Reino Unido de Margaret Tatcher. Os britânicos ganharam o direito de continuar a chamar-lhes Ilhas Falkland.

Apenas em 1983 os civis voltaram ao governo da Argentina. No ano seguinte, uma Comissão da Verdade começa a relatar violações dos direitos humanos durante o governo militar, registando 9 mil casos de desaparecimento.

Durante os anos do regime militar cerca de 30 mil pessoas foram assassinadas, incluindo os pais de Guido.

Mais de 100 crianças perdidas, filhas dos oposicionistas assassinados, foram encontradas, mas as Mães da Praça de Maio acreditam que ainda há outras 400 que não foram identificadas.

O neto de Sonia Torres é uma destas crianças.

Ela é fundadora das Avós de Córdoba, uma organização que procura familiares perdidos na província argentina de Córdoba, que recebeu mais de 400 telefonemas apenas esta semana.

Sonia conta que assistir à reunião de Estela de Carlotto com o neto lhe deu esperanças.

“Tenho confiança de que terei a alegria de abraçar o meu neto antes de morrer.”

A filha de Sonia, Silvia Parodi, foi sequestrada quando estava grávida e o parto aconteceu numa instalação militar, como no caso da mãe de Guido e de muitas outras ativistas da época.

Acredita-se que o filho de Silvia foi levado depois do parto e adoptado.

“Ele deve ter agora 38 anos, sei que está vivo e entre nós, bem escondido. Mas, um dia, ele vai bater à porta e dizer ‘avó, estou aqui'”, diz Sónia.

Procura

Estas mulheres passaram metade da vida a tentar resolver um enigma.

A maioria dos seus filhos e filhas teve mortes presumidas, porque a junta militar raramente deu aos familiares autorização para enterrar os corpos.

Mas as Avós da Praça de Maio sabem que os bebés e crianças estão em algum sítio, a viver com identidades diferentes.

Por isso, nos últimos anos, lançaram campanhas na imprensa e nas redes sociais para estimular homens e mulheres na faixa etária dos 30 anos, que tenham dúvidas sobre suas histórias pessoais, a fazer testes de DNA, que em ser comparados com os registos do banco nacional de dados genéticos.

Durante o Campeonato do Mundo de 2014, no Brasil, jogadores como Lionel Messi e Javier Mascherano deram apoio a uma das campanhas de maior sucesso das avós até ao momento.

A campanha foi chamada de “Estamos À Procura de Vocês nas Últimas Dez Copas do Mundo“.

Muitas outras personalidades do desporto, actores e políticos, apoiam as avós, incluindo alguns dos netos “recuperados”, que agora são membros do Congresso ou activistas de direitos humanos.

Casa Rosada / Wikimedia

Estela de Carlotto,, presidente do movimento Avós da Praça de Maio, e Cristina Kirchner, presidente da Argentina, em Paris na  inauguração do Jardim das Mães e Avós da Praça de Maio.

Estela de Carlotto,, presidente do movimento Avós da Praça de Maio, e Cristina Kirchner, presidente da Argentina, em Paris na
inauguração do Jardim das Mães e Avós da Praça de Maio.

Longa espera

No entanto, estas mulheres sabem que não será fácil encontrar todos os desaparecidos.

“Não podemos esperar que todos estes jovens venham a nós um dia destes. Sabemos que estes homens e mulheres não virão em massa fazer exames de sangue”, diz Rosa Roisinblit.

“O caso de Guido pode ajudar a espalhar a notícia, mas ainda precisamos de ter paciência.”

As avós esperaram durante os últimos 40 anos e agora têm idades que variam entre 80 e 90 anos.

Elas sabem que o tempo está a esgotar-se, mas não estão resignadas.

Levámos 36 anos para encontrar 114 netos. Imagine quanto tempo precisaremos para encontrar os 400 que ainda estão desaparecidos”, conclui Rosa.

ZAP / BBC

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