Valentino Petrelli / Wikipedia

“Partigiane a Brera”: Fotografia, provavelmente encenada, de mulheres guerrilheiras a devolverem as armas aos Aliados em Milão, a 26 de abril de 1945
Canção profundamente mitificada na cultura italiana, nasceu como hino das mondine, foi cantada praticamente em todas as línguas, do albanês ao iídiche, imortalizada por Yves Montand, por Milva, por Becky G em “Casa de Papel”. Os acontecimentos desta semana mudaram para sempre a forma como a cantamos.
Uma das cápsulas de bala não deflagradas que as autoridades dizem ter sido encontrada com a arma alegadamente utilizada no homicídio de Charlie Kirk apresenta, segundo foi revelado, uma inscrição com versos de um célebre hino antifascista italiano.
As palavras “O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao” fazem parte do refrão de Bella Ciao, uma canção de origens pouco claras e com um legado em constante evolução, que vai desde os cânticos entoados por trabalhadoras nos arrozais italianos do século XIX até às suas aparições em séries de televisão e videojogos contemporâneos.
O governador do Utah, Spencer Cox, do Partido Republicano, descreveu a inscrição, bem como outras encontradas em balas descartadas, durante uma conferência de imprensa esta sexta-feira, quando anunciou a detenção de um suspeito de 22 anos pelo homicídio.
Cox identificou o suspeito como Tyler Robinson, do Utah, e afirmou que os investigadores recuperaram as munições utilizadas no ataque ao ativista conservador, que tinham diversas inscrições gravadas.
Uma canção mal compreendida e de origens difusas
Cantada todos os anos a 25 de abril durante o Dia da Libertação de Itália, a Festa della Liberazione, que assinala a queda do regime fascista e o fim da ocupação nazi, Bella Ciao tornou-se uma canção profundamente mitificada na cultura italiana.
A canção espalhou-se pelo mundo e foi interpretada ao longo dos anos por artistas tão diversos como Tom Waits, Becky G e Yves Montand.
“Foi cantada praticamente em todas as línguas, do albanês ao iídiche”, explica à NPR o professor História Europeia Moderna Stanislao Pugliese, da Universidade de Hofstra, cuja investigação incide sobre a resistência antifascista. “Parece realmente tocar um ponto sensível que atravessa fronteiras e culturas.”
A melodia animada e orelhuda, composta em tom maior, acompanha versos igualmente cativantes. Começam de forma quase romântica: “Uma manhã acordei / Ó bela, adeus, bela, adeus, bela, adeus, adeus, adeus“.
Mas o tom rapidamente se transforma em tragédia política, narrando a história de um “partigiano” que “morre pela liberdade“.
“As pessoas costumam associar a Bella Ciao à resistência partisana“, explica a professora de Italiano Diana Garvin, da Universidade do Oregon, que estudou a canção. “E embora isso seja verdade, é apenas uma pequena parte da história.”
Segundo Garvin, Pugliese e outras fontes, a canção tem raízes na música popular italiana. Tornou-se conhecida no século XIX entre as mulheres trabalhadoras sazonais dos arrozais, as mondine, que faziam duras e mal pagas tarefas de mondas.
“A Bella Ciao é provavelmente uma das suas canções mais famosas“, diz Garvin, acrescentando que os versos que hoje se conhecem sobre o “partigiano” moribundo não eram os mesmos que as mondine cantavam.
A versão original falava das condições duríssimas do trabalho nos arrozais: “O narrador descreve o trabalho terrível, entre os mosquitos e a lama até aos joelhos”, explicou Garvin. “Havia cobras de água a deslizar junto às pernas“.
À medida que a canção evolui, os versos tornam-se mais revoltados e politizados. “Falam de melhores condições laborais e da esperança de um dia poderem trabalhar em liberdade. O que se vê na canção é o despertar de um movimento operário internacional que começava a ganhar força.”
Com o tempo, Bella Ciao deixou de ser apenas uma canção sobre a dureza da vida das mondine e passou a integrar as lutas laborais a partir da década de 1920, durante a ascensão de Benito Mussolini.
“As condições pioraram ainda mais com a chamada batalha do trigo. Itália não produzia trigo suficiente para o pão e a massa, e Mussolini precisava desesperadamente da força de trabalho barata destas mulheres“, explica Garvin. “Sob essa pressão, começaram a organizar greves.”
Segundo Garvin, as mondine usavam a canção para coordenar ações políticas, incluindo greves ferroviárias. “Cantavam pequenos excertos que tinham significado para quem conhecia a canção, mas passavam despercebidos a quem não fosse do meio. E conseguiram mesmo conquistar o direito à jornada de oito horas durante os anos mais negros do fascismo.”
Renascimento no pós-guerra
Contrariamente ao que muitos pensam, Bella Ciao não foi amplamente cantada como hino da resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Garvin diz que a canção reapareceu depois da guerra, com nova letra.
“As pessoas pensam nela como uma canção da resistência partisana porque existe uma segunda letra, hoje muito mais conhecida“, disse Garvin.
Essa nova versão, de autoria ainda contestada, deixou de falar de uma trabalhadora dos arrozais. “Agora é, em geral, um partigiano que se despede da sua amada, consciente de que provavelmente morrerá na luta“, explicou.
A canção ganhou enorme popularidade nas décadas de 1950 e 1960, sobretudo numa versão da cantora italiana Milva, que a interpretava por vezes com as duas letras: a antiga e a nova.
“Nos anos 50 e 60, Itália vive um boom económico. Toda a gente começa a ter melhores condições e a canção torna-se mais comercial, começa a passar em programas de rádio populares”, disse Garvin, acrescentando que Bella Ciao se tornou um hino dos protestos estudantis de 1968, em Itália e além.
Bella Ciao nos nossos dias
Nos últimos anos, Bella Ciao ganhou nova relevância tanto na política como na cultura popular. Politicamente, foi apropriada tanto pela esquerda como pela direita.
Em Janeiro, por exemplo, ativistas de esquerda na Alemanha cantaram a canção num protesto contra o partido de extrema-direita AfD. Ao mesmo tempo, Bella Ciao também aparece em listas do Spotify associadas a seguidores do comentador nacionalista branco Nick Fuentes, conhecido crítico de Charlie Kirk.
Na cultura popular, uma versão da cantora norte-americana Becky G foi usada na série espanhola La Casa de Papel, que estreou em 2017 e terminou na Netflix em 2021.
O vídeo oficial de Becky G no YouTube já ultrapassou os 57 de visualizações e conta com mais de 11 mil comentários, incluindo referências recentes ao homicídio de Kirk. “Este vídeo vai ter muita atenção agora“, escreveu um utilizador na sexta-feira.
A canção surge também no videojogo Far Cry 6, numa versão intitulada La Bella Ciao de Libertad, atribuída a La Sonora Yarana.
Segundo uma página de fãs do jogo, trata-se de uma “canção revolucionária contra o regime tirânico do ditador Antón Castillo no universo de Far Cry 6″.
De acordo com um post no Reddit do músico Luchito Muñoz, que trabalhou na banda sonora, La Sonora Yarana não é um grupo real, mas um nome fictício criado para o jogo.
Alguns comentadores notaram que outras cápsulas de bala ligadas ao homicídio de Kirk tinham inscrições relacionadas com videojogos. Uma delas exibia os símbolos “seta para cima, seta para a direita e três setas para baixo“, aparentemente uma referência a comandos para lançar bombas no popular Helldivers 2.
Bella Ciao e Charlie Kirk
Enquanto se especula sobre os motivos do assassino de Kirk, a comunidade académica manifesta preocupação e tristeza por verem versos de Bella Ciao associados ao crime.
“Toda esta situação é de partir o coração“, afirmou Garvin. “Mais do que tudo, parece revelar um momento ascendente de violência política“.
“A nossa cultura e a nossa situação política parecem refletir bastante a Itália do início dos anos 1920″, diz Pugliese. “Mussolini era um fenómeno novo, e a elite política italiana não estava preparada para lidar com ele”.
“Acho que esta última década mostrou que boa parte da nossa classe política, tanto à esquerda como à direita, não consegue compreender o que realmente se passa no país. E isso pode abrir caminho para um extremismo político como o que acabámos de ver nos últimos dias”, acrescenta.
Segundo Pugliese, os acontecimentos desta semana mudaram para sempre a canção. “Ela tornou-se o hino da resistência antifascista e antinazi, uma canção que cantamos todos os 25 de Abril para celebrar a libertação do fascismo e do nazismo. E já não sei se vamos conseguir voltar a cantá-la da mesma forma, com esta sombra a pairar sobre ela.”
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Rip Charlie Kirk.