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Religião “inofensiva e cumpridora da lei”. Afinal, os cultos satânicos não são tão maus como parecem

Quando se pensa no termo satânico, a tendência é associar a cultos que envolvem exorcismos, sacrifícios e rituais. Mas a realidade pode ser diferente da fantasia criada à volta desse conceito e das imagens vistas nos filmes de terror, como é o caso do Exorcista.

Num artigo publicado em 1993 na JSTOR, os académicos Diane E. Taub e Lawrence D. Nelson revelaram que, “enquanto os aspetos antissociais e criminosos do satanismo têm sido o foco da maior parte da escrita laica e dos meios de comunicação, o discurso sociológico tem geralmente representado o satanismo como uma religião alternativa inofensiva e cumpridora da lei”.

Num artigo publicado no Big Think, o jornalista Tim Brinkhof indicou que, apesar da sua influência na cultura ‘pop’, os filmes e enredos não retratam com precisão os cultos satânicos ou as pessoas que neles participam. “O [filme] Exorcista diz menos sobre o satanismo do que sobre a Igreja Católica Romana, onde o exorcista e o defensor do diabo eram (e continuam a ser) profissões reais”, referiu.

No livro “The Little Book of Satanism: A Guide to Satanic History, Culture, and Wisdom” (“O pequeno livro do satanismo: um guia para a história, cultura e sabedoria satânica”, em tradução livre), a jornalista La Carmina chegou a uma conclusão semelhante a de Taub e Nelson.

“Os satanistas modernos não são violentos e, na sua maioria, são ateus, o que significa que não acreditam na existência do diabo”. Também não sacrificam animais e crianças. “Pelo contrário, Satanás – o anjo caído que desafiou Deus – é uma metáfora para a revolta contra a superstição e a autoridade arbitrária”, explicou.

Segundo o artigo, “o Satanás nos cultos satânicos modernos não é a figura que encontramos no Antigo Testamento, que usa a dor, o engano e a desgraça para testar a piedade de pessoas como Jó. Nem é o Satanás do Novo Testamento, que parece tentar Cristo, cimentando-se como o adversário de Deus”.

O poema épico de John Milton, “Paradise Lost”, de 1667, é uma das primeiras peças de literatura que retrata o Diabo sob uma luz positiva. O Satanás de Milton, conhecido como Lúcifer antes da sua queda, é um anti-herói carismático, que se rebela e paga por isso. O poema sugere que Lúcifer é conduzido pela sua ânsia de poder e pelo desejo de reconhecer a sua própria individualidade.

Já na Idade do Iluminismo, continuou o jornalista Tim Brinkhof, o fascínio pelo adversário tradicional de Deus continuou a crescer. Neste novo contexto, simbolizava o individualismo, a rebelião contra uma autoridade arbitrária, incompetente, ou injusta – temas integrantes do satanismo dos tempos modernos.

De acordo com o artigo, enquanto na religião convencional é pregada a abnegação e a conformidade, no satanismo defende-se a tolerância e a liberdade de expressão. Prega-se “a indulgência em vez da abstinência. Isto pode parecer um abraço indiscriminado de desejos carnais – bem, porque é – mas também implica que uma pessoa não deve ser envergonhada pela sua sexualidade”, relatou.

Os seguidores encorajam a uma leitura alternativa de textos religiosos, como o Livro do Génesis. Neste, uma serpente convence Eva a comer o fruto proibido, fazendo com que ela e Adão fossem expulsos do Jardim do Éden. “Embora esta não seja uma interpretação cristã dominante, alguns interpretaram a história como sendo Eva fraca (enquanto Adão supostamente teria resistido), e alguns homens usaram isto como uma desculpa para tratar as mulheres como inferiores”, continuou.

Um satanista, pelo contrário, retrata Eva como corajosa. Em vez de cometer um pecado, ela apenas se defendeu, “recusando-se a aceitar a sua subserviência a Adão e tentando ganhar conhecimento e poder, que lhe foi arbitrariamente negado pelo seu criador”, apontou ainda o repórter.

Cultos satânicos como veículos para a mudança

Na sua análise, Tim Brinkhof referiu igualmente que, “tal como Cristo sofreu tortura e injustiça na cruz, também os cristãos devem suportar as muitas dificuldades que encontram ao longo das suas vidas. É uma ideologia bela e bastante convincente. Infelizmente, por vezes é utilizada – incorretamente – como argumento para justificar por que razão os impotentes devem aceitar a sua subjugação aos poderosos”.

Também aqui, os cultos satânicos discordam da religião convencional. Em vez de dar a outra face, apelam aos seus seguidores para que decretem “vingança”. Mas não se trata de violência: investigadores dos anos 70 e 80 descreveram repetidamente a organização como pacífica e cumpridora da lei. É um apelo à ação, à resolução de situações de injustiça em vez de sofrer em silêncio.

O Templo Satânico, declarou o jornalista, projetou-se como um veículo de mudança social. Nos últimos anos, tem sido intransigente no seu apoio aos direitos reprodutivos das mulheres. Como instituição religiosa reconhecida, pode proteger as liberdades civis dos seguidores de formas que um grupo de ativistas não poderia.

Em 2015, a organização processou o Estado do Missouri, argumentando que as suas leis rigorosas sobre o aborto violavam as convicções religiosas dos seus membros. Desde então, casos semelhantes foram levados aos tribunais do Texas, Idaho, e Indiana, entre outros.

O Templo Satânico é também um defensor da comunidade LGBTQ. Quando um pasteleiro cristão do Colorado recusou-se a fazer um bolo de casamento para clientes gays, os membros do Templo Satânico pediram bolos que elogiavam o diabo. Embora a orientação sexual não esteja explicitamente protegida pela Lei dos Direitos Civis, é contra a lei as empresas recusarem clientes com base na sua religião.

ZAP //

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