O período mais duro da guerra entre Israel e Hamas pode ainda estar para acontecer. Enquanto Gaza se transforma num “buraco infernal à beira do colapso”, “a ordem virá”, garante Israel. Mas a promessa traz riscos.
Face a centenas de milhares de militares israelitas que, há dias, envergam uniformes de combate e carregam armas pesadas na fronteira entre Israel e Gaza, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, fez na passada quinta-feira a sugestão mais clara até agora sobre um eventual ataque israelita por terra.
“Veem Gaza à distância por agora. Em breve verão por dentro. A ordem virá“, disse aos soldados. Pouco depois, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu publicou um vídeo de si próprio, rodeado por militares na fronteira, a prometer vitória.
Apesar de Israel possuir um dos exércitos mais ricos e poderosos do mundo, tanto Netanyahu como o ministro Gallant estão cientes dos riscos envolvidos nesta operação, bem como as centenas de milhares de tropas estacionadas na fronteira.
Como eliminar “todos os membros do Hamas” — tal como prometeu Netanyahu — num território que inclui uma complexa rede de 500 km de túneis, segundo o grupo palestiniano, e cerca de 200 reféns nas mãos do inimigo?
E, mesmo que tal fosse possível, como garantir que novos membros não assumirão de imediato o legado do grupo?
E paira ainda outra questão: qual poderá ser a reação dos países árabes vizinhos ao crescente número de vítimas — que ultrapassa já os 4.000 — face à retaliação israelita ao brutal ataque de 7 de outubro pelo Hamas, que resultou em 1.400 israelitas mortos, comunidades destruídas e mais de uma centena de pessoas raptadas, incluindo dezenas de menores e idosos, segundo Israel?
Como reagirão aliados, como os EUA e a Europa, enquanto Gaza se transforma num “buraco infernal à beira do colapso”, nas palavras da agência da ONU para refugiados palestinianos?
Por fim, o que dirão os próprios israelitas, face à crescente impopularidade de Netanyahu e à perspetiva de mais mortes em combate?
A promessa israelita de “eliminar o Hamas e destruir as suas capacidades militares e políticas” é considerada colossal e difícil de cumprir — e isso ajuda a entender o impasse sobre avançar por terra em Gaza, apesar das tropas e posição de ataque.
Compreenda, de seguida, os principais riscos.
1. Armadilhas escondidas num labirinto subterrâneo
A faixa de Gaza tem apenas 41 km de comprimento e 10 km de largura. Contudo, essa dimensão aumenta quando se considera o lado obscuro do território. É muito difícil avaliar a dimensão do “Metro de Gaza”, como Israel denomina a rede de túneis em constante construção na região e sob controlo do Hamas.
Após confrontos em 2021, as forças militares israelitas afirmaram ter destruído mais de 100 km de túneis em ataques aéreos. O Hamas, porém, disse que os seus túneis se prolongavam por 500 km e que apenas 5% tinham sido atingidos — o metropolitano de Lisboa, para efeitos de comparação, tem uma extensão de 44,5 quilómetros e a do Porto, a mais extensa, 67 quilómetros.
“O risco da rede de túneis é que permitirá que os defensores do Hamas se desloquem pelo campo de batalha enquanto estão ocultos e protegidos de ataques”, explicou David Betz, professor de Guerra no Mundo Moderno na universidade King’s College de Londres.
“Assim, podem ser capazes de atacar as forças israelitas de surpresa, pelo flanco ou pela retaguarda, e potencialmente desaparecer novamente”, disse, esclarecendo que é difícil localizar as entradas e saídas dos túneis.
“Eles também são bastante difíceis de destruir. Os explosivos têm de ser colocados numa parte significativa do seu comprimento para causar um colapso grande. Um pequeno colapso pode ser contornado pelo Hamas e o túnel voltar a ser usado”, afirma.
Além disso, como relembra a correspondente internacional principal da BBC, Lyse Doucet, “não está claro até que ponto os israelitas têm conhecimento acerca do que os espera na Faixa de Gaza”.
“A habilidade militar do Hamas — incluindo o seu conhecimento surpreendentemente preciso da segurança israelita, que permitiu ao grupo iludir as formidáveis defesas do país — impressionou Israel. O Hamas provavelmente exibirá o mesmo nível de sofisticação quando enfrentar a reação israelita, que certamente será feroz“, acrescenta ela.
À BBC, Daphné Richemond-Barak, especialista em guerra subterrânea da Universidade Reichman, em Israel, explica que os túneis dentro de Gaza têm centros de comando e controlo, eletricidade, e permitem a permanência prolongada de membros do grupo.
“O Hamas poderia facilmente utilizar escudos humanos no contexto dos túneis e simplesmente colocar reféns israelitas, e outros neles”, conclui.
2. Futuro sombrio para os reféns
A segurança de mais de uma centena de reféns sequestrados pelo Hamas no ataque de 7 de outubro contra Israel está no centro das estratégias delineadas pelas forças de segurança israelitas. Nesta sexta-feira, o exército de Israel divulgou novos pormenores sobre reféns em Gaza.
Duas reféns americanas que tinham sido raptadas pelo Hamas foram libertadas, após um acordo mediado pelo governo do Qatar. Dos atualmente detidos na Faixa de Gaza, segundo Israel, mais de 20 têm menos de 18 anos – o mais jovem é um bebé de 9 meses. Entre 10 a 20 pessoas têm mais de 60 anos, prossegue o comunicado, que indica que “a maioria dos reféns está viva”.
Os israelitas também afirmam que cadáveres foram “levados como reféns” para a Faixa de Gaza após os ataques do Hamas. Mas o paradeiro da maioria é um mistério.
“Enquanto faltarem informações, os riscos para os reféns e para os soldados israelitas existirão”, diz o analista político-militar Bilal Y. Saab, do Programa de Médio Oriente e Norte de África do think-tank britânico Chatham House.
“As Forças de Defesa de Israel, que têm como alvo o Hamas, podem acabar por matar reféns com as suas próprias armas”, adverte o professor Betz à reportagem, que cita combates em Mariupol, na Ucrânia, há um ano, quando forças ucranianas lutavam a partir de pisos altos de prédios de apartamentos, enquanto civis de origem russa ficavam encurralados nos pisos inferiores.
“Da mesma forma, se pressionado, o Hamas pode matar ou ameaçar matar reféns para tentar influenciar as decisões dos comandantes israelitas. (…) Não vejo como o destino dos reféns israelitas possa ser outra coisa senão muito negro.”
3. Custo das mortes de civis palestinianos (e de soldados israelitas)
A ONU informou nesta sexta-feira que 16 dos seus funcionários foram mortos em Gaza desde que a guerra começou.
Citando o Ministério da Saúde de Gaza, as Nações Unidas referem pelo menos 853 crianças mortas pelos bombardeamentos de Israel e pedem a paralisação imediata dos bombardeamentos — vindos de ambos os lados. O total de feridos em Gaza segundo o documento é de 12.493, “incluindo 3.983 crianças e 3.300 mulheres”. Mais de um milhão de pessoas foram obrigadas a deslocar-se das suas casas devido à guerra.
Protestos contra a resposta de Israel têm sido registados nas principais capitais da Europa e do mundo árabe. Protestos a favor de Israel também têm sido registados em várias localidades.
Em visitas recentes a Israel, líderes ocidentais sublinharam apoio incondicional ao direito de Israel de se defender contra os seus inimigos “desde que o direito internacional seja respeitado”.
Com o aumento das críticas ao impacto sobre civis da resposta israelita à agressão do Hamas, Israel tem “um problema mais político do que militar”, na avaliação do analista Saab. “Israel pode utilizar o seu armamento mais pesado, mas corre o risco de alienar os aliados ocidentais que pedem a Israel que respeite as regras da guerra”, diz.
Caso as forças terrestres israelitas entrem por terra em Gaza, o número de mortos vai definitivamente aumentar. “É provável que, mais uma vez, seja a população civil a sofrer o peso do conflito”, diz um especialista da BBC.
Na avaliação do jornalista britânico Jonathan Freedland, Israel pode “estar a caminhar para uma ‘emboscada’ do Hamas”.
“(Numa invasão por terra), Israel sofrerá pesadas baixas e irá infligi-las – e ambos os resultados agradarão perfeitamente ao Hamas”, disse ao jornal The Guardian, apontando que um aumento do número de mortos palestinianos “seria uma vantagem na guerra de propaganda“, enquanto as mortes de soldados israelitas reforçariam o Hamas entre os palestinianos.
“Uma guerra longa e sangrenta é o que o Hamas e os seus apoiantes iranianos – desesperados para inviabilizar os recentes movimentos no sentido da ‘normalização’ das relações entre Israel e vários dos seus vizinhos, principalmente a Arábia Saudita – anseiam”, avalia Freedland no artigo.
Netanyahu, cujo governo tem sido alvo de grandes protestos nas ruas de Israel, vê a sua oposição interna intensificada após as falhas de informações que não anteciparam e não conseguiram evitar os ataques do Hamas.
Ainda assim, Netanyahu conseguiu o apoio da oposição para formar um novo governo unificado e a instalação de um gabinete de guerra, perante um consenso no qual a população parece não ver alternativas para além da “aniquilação do Hamas”.
4. Segunda frente contra inimigos mais fortes
“É difícil acreditar que o Hezbollah se mantenha inativo enquanto o seu aliado palestiniano próximo é potencialmente desarmado pelas forças de segurança de Israel”, afirma o analista político-militar Bilal Y. Saab.
Face à possibilidade de uma invasão terrestre em Gaza, o especialista, que serviu como consultor sénior do Departamento de Defesa dos EUA, considera que “é muito real a probabilidade de uma outra frente de guerra ser aberta”.
O foco mais provável situa-se na fronteira norte de Israel com o Líbano, onde mútuos bombardeamentos entre militantes do Hezbollah e forças militares israelitas já resultaram na evacuação de cidades inteiras nos últimos dias.
A formalização desta nova frente de guerra implicaria uma “escalada dramática” nos problemas que Israel enfrenta.
“O Hezbollah dispõe de um arsenal de mísseis significativamente mais avançado do que o do Hamas — maior tanto em número como em alcance, precisão e poder explosivo”, explica David Betz.
“Aeroportos, bases, infraestruturas de transporte e comunicações, instalações portuárias e afins em Israel poderiam ser alvo de ataques”, continua o professor, sublinhando que uma segunda frente no Líbano poderia sobrecarregar as forças de defesa israelitas.
“Qualquer operação terrestre em Gaza exigiria um elevado número de tropas, e ainda mais seriam necessárias no norte”, diz Betz.
O Irão está no cerne desta discussão. O país tem emitido avisos severos de que o ataque de Israel a Gaza não ficará sem resposta. Financia, treina, arma e controla várias milícias no Médio Oriente. Nas palavras do correspondente de segurança da BBC, Frank Gardner, “de longe, a mais potente delas é o Hezbollah no Líbano”.
Israel e Líbano travaram um conflito duro em 2006. Embora o resultado tenha sido inconclusivo, centenas de soldados foram mortos e modernos carros de combate israelitas foram destruídos por minas e emboscadas bem planeadas. “A abertura de uma nova frente faria com que o conflito de 2006 parecesse um passeio no parque”, avalia Saab à BBC News Brasil. Isto porque, desde 2006, o Hezbollah rearmou-se com o auxílio iraniano.
Estima-se que o grupo disponha atualmente de cerca de 150 mil foguetes e mísseis, muitos dos quais têm longo alcance e são guiados com precisão, o que aumenta significativamente o seu poderio militar em comparação com 2006.
5. Entrada de novos países numa vasta guerra
Para Bilal Y. Saab, uma guerra contra o Hezbollah aumenta o “risco de uma escalada considerável”. Por outras palavras, aumenta a probabilidade de outros países se envolverem no conflito — algo que os europeus e os norte-americanos tentam evitar a todo o custo.
Depois de uma ronda por vários países árabes pelo seu secretário de Estado, Antony Blinken, o presidente americano Joe Biden fez esta semana uma visita relâmpago à região, prevendo encontros com líderes do Líbano, Jordânia, Egipto e Autoridade Palestiniana, precisamente para acalmar os ânimos. No entanto, Biden apenas conseguiu visitar Israel.
Os encontros com líderes árabes, que se realizariam na Jordânia, foram subitamente cancelados após a explosão num hospital de Gaza, cujas causas se tornaram objeto de novas trocas de acusações entre israelitas e palestinianos.
Dias mais tarde, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, também viajou para a região, onde encontrou líderes da Autoridade Palestiniana, da Arábia Saudita e do Egipto, além de Israel.
Duas mensagens principais foram repetidas por Blinken, Biden, Sunak e outros líderes ocidentais: “Apoiamos Israel e não podemos permitir que a guerra ultrapasse as fronteiras de Gaza”. Mas o que gera tanta preocupação?
“Se o Irão se envolver diretamente, em vez de apenas através do Hezbollah, seria então muito provável que outras potências fossem atraídas para o conflito”, explica o professor David Betz. Isso incluiria os próprios EUA, que enviaram na semana passada dois porta-aviões, cerca de 2000 fuzileiros navais e navios de apoio para o Médio Oriente. Sinais desta escalada já começam a surgir, para além do Hamas e do Hezbollah.
Na passada quinta-feira, um navio de guerra da Marinha dos EUA intercetou mísseis e drones lançados do Iémen pelo movimento Houthi, alinhado ao Irão, segundo o Pentágono. O governo americano referiu que os mísseis foram lançados “potencialmente contra alvos em Israel”.
O Pentágono também mencionou que as forças americanas no Iraque e na Síria foram atacadas várias vezes nos últimos dias. Washington está em alerta para atividades de grupos apoiados pelo Irão, enquanto Israel continua a atacar alvos do Hamas em Gaza.
“A situação é extremamente confusa e repleta de um potencial significativo para escalada”, conclui Betz.
ZAP // BBC
Guerra no Médio Oriente
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