Supensão polémica do “Crime nas Correntes d’Escritas”. Porque não foi publicado?

Leandro Müller / Wikimedia

O escritor cabo-verdiano Germano Almeida

A Leya suspendeu a edição do livro “Crime nas Correntes d’Escritas” do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, Prémio Camões 2028, depois de ameaçada com um processo judicial por pessoas que se sentiram agredidas pelo conteúdo da obra.

Estas pessoas, cujos nomes não são divulgados, sentiram-se “invadidas e agredidas pela forma como são tratadas” no livro de Germano Almeida, ameaçando a LeYa com um processo judicial depois de terem recebido o livro das mãos do próprio autor, informa a editora numa mensagem enviada à agência Lusa.

Foi o próprio escritor cabo-verdiano quem anunciou o cancelamento da publicação do livro “Crime nas Correntes d’Escritas”, num artigo no Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL).

A história ficcionada centra-se numa investigação levada a cabo pelo próprio romancista e pelo poeta da Póvoa de Varzim Aurelino Costa, participante de sempre no evento Correntes de Escrita, para descobrirem o presumível ladrão de um manuscrito original de Mário Zambujal.

Apesar de ser uma obra de ficção que aborda um evento imaginado, as personagens da história são participantes reais do Correntes de Escrita, um festival literário que se realiza todos os anos na Póvoa de Varzim, no distrito do Porto.

LeYa suspendeu lançamento com medo de processo

A editora nota que consultou advogados que “confirmaram que o livro podia ser objecto de acção judicial por parte dos autores dessas ameaças”.

“Em face disso, e após ponderação, a administração da LeYa decidiu suspender a edição deste livro”, acrescenta o departamento de comunicação do grupo.

O lançamento de “Crime nas Correntes d’Escritas”, o mais recente romance de Germano Almeida, que venceu o Prémio Camões em 2018, estava previsto para fevereiro, durante a edição deste ano do festival literário, onde o escritor cabo-verdiano costuma ser presença assídua.

Após a suspensão do lançamento, numa nota intitulada “Porque não saiu agora o livro”, Germano Almeida explicou no JL que o livro pretendia ser “uma brincadeira de amizade aos colegas” que foi conhecendo e com quem foi privando ao longo dos anos no Correntes de Escrita, e também uma homenagem ao festival literário.

O escritor contava ainda que enviou o livro pronto para impressão, em ‘pdf’, “a dois dos escritores que nele têm maior exposição“, tendo um deles acusado a recepção e sublinhado que tinha ficado “deliciado” com a obra.

“Quando já esperava ter na mão o primeiro exemplar, eis que recebo do meu editor a informação de que a administração da Leya tinha mandado impedir a publicação do livro. A razão invocada foi que alguém, que pedia para continuar no anonimato, ameaçava recorrer aos tribunais para impedir a distribuição”, atirou ainda o escritor.

“Discordei dessa postura, que continuo considerando inaceitável: um anónimo impedir a publicação de um livro, como se fosse possível recorrer aos tribunais sob anonimato”, acrescentou ao JL, garantindo que fará “o livro ser editado na íntegra”.

Quem ameaçou a editora?

O escritor Aurelino Costa foi um dos que recebeu o livro “Crime nas Correntes d’Escritas” e diz ao Expresso que a obra é “admirável”, manifestando surpresa pelo facto de “uma paródia” se “converter num atentado ao bom nome, à honra ou à dignidade de qualquer” das pessoas referidas no livro.

“Seria importante a LeYa explicar qual o parecer jurídico, ou seja, por que haveria lugar a um processo”, refere o poeta, salientando que o anonimato do denunciante é um “acto de cobardia e de fuga”.

O Expresso revela que a outra pessoa a receber o livro foi a escritora Tânia Ganho, mas esta garante que, “por falta de tempo, não o chegou a ler na íntegra – apenas o folheou”, conforme cita o jornal.

Germano Almeida anuncia adeus à Caminho

O autor revela, agora, ao Expresso que soube da suspensão do lançamento em Dezembro passado, depois de ter estado a trabalhar no livro durante “mais de um ano”.

“Fiquei surpreendido”, conta ainda Germano Almeida, que publica os seus livros em Portugal, com a chancela da Caminho, detida pelo grupo editorial LeYa, há mais de 30 anos.

O escritor manifesta ainda a sua desilusão e realça ao Expresso que não tem “mais futuro” na editora. “A Leya não se dignou a falar comigo. Considero isso um acto de prepotência“, aponta.

“Nada farei a respeito dos livros que já foram publicados, mas os próximos não serão deles. Escolherei outra editora“, anuncia ainda Germano Almeida.

Humor e sátira social marcam o livro

O JL publicou um excerto da obra e percebe-se o humor e a sátira característicos da escrita de Germano Almeida, nomeadamente quando, no decorrer da investigação policial, descarta vários autores do leque de suspeitos por terem obra mais do que feita e ego tão elevado que não se sujeitariam à vergonha de se apossarem e publicarem obra que consideram inferior à própria.

Pôs de parte também poetas e escritores de teatro, porque o manuscrito era de uma história em prosa, bem como os autores de língua castelhana, que não fazem um “mínimo esforço” para falar “portunhol”, e mesmo os que estão nas Correntes desde a primeira edição, continuam a não dizer uma frase em português, nem sequer “bom dia”.

Germano Almeida continua, dizendo que entre os sobrantes, encontram-se “os escritores que vieram dos ‘palpos’”, e que a sua ideia é encontrar no meio “dessa meia dúzia de africanos”, que andam por ali “na boa vida”, o “espertalhão” que se apossou do manuscrito de Zambujal.

O protagonista adianta ainda, em relação a esta última hipótese, que procede como aprendeu com a polícia. “Ninguém vai estranhar, nem mesmo esses pretos, eles já estão treinados para serem acusados de qualquer coisa má que aconteça em qualquer lugar e receberem a acusação sem refilar”.

Abandonando depois esta ideia e lamentando não haver “nenhum escritor cigano nestas jornadas literárias” que pudesse servir de suspeito, o autor protagonista, sempre leal ao seu tom satírico, voltou à ideia de entrevistar toda a gente e verificou que o parceiro de investigação, Aurelino, se congratulou com essa decisão afirmando: “Estou a gostar de ter-te como meu ajudante, até que sabes pensar”.

“Sorri para ele com candura: muitos brancos acabam por ficar surpreendidos ao verem que os pretos também pensam”, lê-se no final do excerto do capítulo publicado no JL.

ZAP // Lusa

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