O que o “terapeuta dos ricos” aprendeu sobre felicidade ao ouvir os problemas dos milionários

ZAP // Thomas Hawk, The Crunchies! / Flickr; Xavier Collin / Image Press Agency / Depositphotos; Wknight94 / Wikipedia

Desde que se especializou em atender pacientes milionários, o psicoterapeuta americano Clay Cockrell afirma que desistiu de tentar, ele próprio, enriquecer.

“Eu parei de jogar na lotaria. Percebi os perigos de se ter tudo em excesso.”

Cockrell, que tem uma clínica de terapia em Nova Iorque, nos EUA, conta que tenta ajudar os seus clientes a lidar com o que o chama de “efeito tóxico da abundância“: a ideia de nunca se ter o suficiente.

“Aquela ideia de que ‘quando eu tiver 10 milhões, vou estar seguro’. E chegamos aos 10 milhões, e percebemos que, na verdade, precisamos de 50, A conclusão é que a felicidade não vem da conta bancária. Simplesmente não vem”, diz Cockrell, numa entrevista à BBC.

“Este comportamento tem um certo grau de vício. Porque os 50 milhões não serão suficientes, e daí ‘vou precisar de 100 milhões, 250 milhões’.”

Um dos ângulos da terapia, portanto, é ajudar os pacientes a identificar propósitos que vão além de acumular dinheiro.

“Se a felicidade não está num número, está onde? E a partir disso começamos a experimentar. Está na filantropia? Está nos relacionamentos? Está em construir algo novo, do zero? Ter ambição é ótimo, mas desde que analisada e alinhada com um porquê.”

Cockrell especializou-se em atender os super-ricos por acaso, depois de um paciente de altíssimo rendimento gostar do seu estilo — o terapeuta faz as suas sessões durante caminhadas pelo parque, em vez de dentro de um consultório. Este paciente indicou-o para outras pessoas desse círculo.

E o próprio terapeuta surpreendeu-se com os problemas trazidos pela riqueza — até os que são desdenhados como “problemas de primeiro mundo”.

“Assim como muitas pessoas, eu acreditava que o dinheiro solucionava problemas. Ele soluciona alguns, mas não todos. Muitos dos meus clientes dizem que terapeutas anteriores ouviam as queixas deles e respondiam: ‘Não deveria tratar como problema coisas como onde estacionar o seu iate ou como resolver a herança dos seus filhos’. Mas sempre acreditei numa abordagem de compreensão e aceitação, de achar que os problemas deles são legítimos”, disse.

“Podem não ser os mesmos problemas que os meus, mas agora sei que o dinheiro é um fator complicador na vida das pessoas.”

Essa, Cockrell ressalta, é a experiência de uma parcela ínfima da população global.

Para a maioria, questões relacionadas com a escassez — e não à abundância — de dinheiro é que são fatores complicadores.

Um exemplo: uma pesquisa da Associação Britânica de Psicoterapia apontou que quase todos (94%) os terapeutas do país identificaram que a saúde mental dos seus pacientes havia piorado por causa de preocupações financeiras e a subida no custo de vida.

Especialistas explicam que a sobrecarga mental de fazer o dinheiro “render” até o fim do mês impacta a nossa tomada de decisões e desempenho cognitivo.

Dificuldades de relacionamento

De volta aos super-ricos, Cockrell faz a ressalva de que conhece tantos deles infelizes porque a sua amostra é, naturalmente, enviesada: “as pessoas não procuram um terapeuta quando estão felizes”.

Mas aponta que “as pessoas que eu atendo são aquelas em que o dinheiro complicou a sua vida e trouxe alguma negatividade, (…) falta de empatia, falta de capacidade de compreender quem não alcançou o mesmo nível de sucesso.”

Na mesma linha, o terapeuta diz que os super-ricos acabam por desenvolver dificuldades de relacionamento na família, tendem a desconectar-se do mundo real e sentem muita desconfiança em relação a pessoas que se aproximem deles.

“As pessoas ricas costumam interagir apenas com quem consiga entendê-las. Isso é muito comum. E o que acontece é que elas ficam muito, muito isoladas e desconfiadas de pessoas novas“, diz.

“O medo é ‘será que estás a entrar na minha vida só pelo que posso fazer por ti? Por causa do meu estatuto de celebridade, ou da minha riqueza?’. Talvez paranoia seja uma palavra forte, mas há muita suspeita — e isso impede que novas relações sejam formadas.”

Vida de herdeiro

Passar a infância e adolescência numa família endinheirada traz também os seus desafios.

“Os pais costumam querer poupar os filhos às dificuldades que eles próprios enfrentaram e dar-lhes uma vida mais fácil. Isso é normal. Mas é preciso perceber que superar as dificuldades foi o que o fez ser como é”, diz o terapeuta.

“Além disso, quando expõe o seu filho criança ou adolescente a esse mundo de aviões particulares, restaurantes maravilhosos e férias em lugares incríveis, quando ele tiver 21 anos vai ter a sensação de ‘já vi tudo, já provei tudo‘ e sentir-se-á aborrecido. Vai começar a testar limites, seja com uso de drogas ou comportamentos de risco, para sentir a adrenalina. Só para ter a sensação de que está a fazer algo novo.”

Cockrell também observa que os filhos dos super-ricos sofrem “uma enorme pressão para se saírem melhor do que os seus pais”, em especial os que seguem a mesma carreira que os pais — como celebridades do mundo do entretenimento, chamadas pejorativamente de nepobabies.

“É uma grande pressão, que contrasta com a ideia de percorrer um caminho próprio, descobrir as próprias paixões e ter direito a errar e fracassar. Em contrapartida, muitos também sofrem com a falta de ambição. ‘Para que é que eu vou para a faculdade ou começar o meu próprio negócio?’ Ter tanta riqueza pode ser deprimente, seja porque deixam de ter propósito, seja porque são sempre pressionados a sair-se melhor do que os seus pais.”

Fascínio por super-ricos

Clay Cockrell ganhou mais destaque nos últimos anos justamente a escrever sobre os paralelos da sua prática com a série Succession (2018-2023), que mostra as disputas de uma família multimilionária para controlar o conglomerado mediático criado pelo patriarca.

“A série é bem exata ao retratar o efeito tóxico do excesso” sobre os multimilionários, diz Cockrell.

Parte do sucesso de Succession deve-se ao facto de que os super-ricos despertam habitualmente desde fascínio até desdém, dependendo do interlocutor.

Os bilionários tornaram-se ídolos, ganharam enorme influência política e têm, para alguns, o estatuto de visionários e inovadores. Mas, para outros, tornaram-se símbolos de um sistema fiscal global considerado injusto, que críticos dizem favorecer a concentração de rendimento às custas da população mais pobre.

Clay Cockrell diz que os seus pacientes ultra-ricos estão cientes dessas diferentes perceções sobre eles.

É algo que vai e vem em ciclos: há momentos em que a sociedade admira os mais ricos como pessoas que trabalharam duro, e há momentos em que isso muda e se converte em sentimentos negativos, de que eles conquistaram tudo por meios nefastos. Muitas dessas pessoas são incrivelmente inteligentes, batalhadoras e conquistaram coisas admiráveis nas suas vidas. Às vezes elas são admiradas e às vezes, vilipendiadas. E sentem-se muito confusas quanto a isso.”

Para as pessoas “comuns”, Cockrell acha que a maior lição da sua prática é não acreditar que tornar-se milionário é o segredo da felicidade.

“Para o resto de nós que acreditamos que ‘se eu conseguir aquele aumento, se eu trabalhar ainda mais, vou ser feliz’, veja as pessoas que têm tudo: elas não estão felizes. E isso desafia-nos a pensar: então o que vai me trazer felicidade e alegria? É nisso que está o valor. É nos relacionamentos, na família, na contribuição que fazemos para a comunidade. É daí que vem a felicidade“.

ZAP // BBC

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