Entre Sócrates e Montenegro, o que mudou: tolerância, escrutínio (e cultura de suspeição)

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Mário Cruz / Lusa

O antigo primeiro-ministro José Sócrates

Muitos avisos foram feitos sobre o comportamento de José Sócrates: “Ninguém ligava nenhuma”. Agora, Portugal é um país diferente.

Ao contrário do que se pensava há praticamente um ano, quando a AD venceu as eleições por uma margem muito curta, o Governo percorreu um caminho seguro, estável, ao longo de 2024.

Até que 2025 chegou e o cenário mudou. Primeiro, o caso Hernâni Dias, que levou mesmo à demissão do secretário de Estado; pouco depois uma alegada tensão entre secretários de Estado; e logo a seguir uma pequena remodelação no Governo.

Mas o Governo nunca tremeu tanto como agora. A meio de Fevereiro, surge o primeiro indício: a empresa que pertence (ou pertencia) à esposa e aos filhos de Luís Montenegro.

Cedo se começou a falar sobre um alegado aproveitamento da lei dos solos, mas rapidamente se descartou essa ideia. E, no debate público, também se fez uma distinção clara entre este caso e o processo de Hernâni Dias.

Entretanto soube-se que: a empresa contraria o Código do Governo; a venda da quota do primeiro-ministro à esposa é nula; e que a lista de clientes da empresa começava a ser suspeita, nomeadamente nas dúvidas à volta da Solverde.

Escrutínio e Sócrates

Num ritmo quase diário, as notícias acumularam-se; as suspeitas também, ficando o primeiro-ministro cada vez mais apertado – não só pela oposição, mas também pela opinião pública no geral.

Luís Montenegro tem razão num assunto: estará a ser o primeiro-ministro mais escrutinado de sempre em Portugal. Há 15 ou 20 anos não era assim.

“Nós sabemos que José Sócrates passou entre os pingos da chuva durante imenso tempo. É verdade. É um facto”, começa por lembrar Ana Sá Lopes.

“Mas não sei se os portugueses estão tão tolerantes como estavam no tempo de José Sócrates”, continua a comentadora política, no Público.

Helena Pereira segue o mesmo discurso: nunca houve tanto escrutínio à volta de um primeiro-ministro porque “no passado não se olhava para certas coisas”.

No passado, quando José Sócrates ainda era primeiro-ministro, o jornalista José António Cerejo – precisamente no Público – deixou vários avisos sobre o que Sócrates estaria a fazer: licenciatura, interferência em concurso público, intimidações aos jornalistas, um plano sobre as Águas de Portugal, misturado com perguntas que o então líder do Governo nunca respondeu sobre prováveis conflitos de interesses.

“Ninguém ligava”

João Miguel Tavares também foi deixando vários avisos sobre o “perigo” que José Sócrates representava: suspeitas de corrupção, de favores, de tentativa de controlo da sociedade em vários níveis (política, banca, justiça, comunicação social). O próprio João Miguel assumiu, anos depois, que tinha uma “obsessão” com José Sócrates.

E, nesse artigo da aparente confissão, João Miguel Tavares já escrevia (em 2015) que havia um “padrão” em José Sócrates – “padrão esse que os portugueses manifestamente desvalorizaram”.

10 anos depois, Ana Sá Lopes resume: “Ninguém ligava nenhuma. Se as pessoas tivessem tomado atenção ao que foi descoberto sobre Sócrates e divulgado pelos jornalistas, se calhar teriam percebido antes”.

Excessos

Mas um maior escrutínio pode originar excessos, avisa Manuel Carvalho. Voltando ao caso Montenegro, o especialista em política lembra que a empresa Spinumviva “presta serviços pelos quais recebe avenças. Não são avenças que nascem do nada”.

Na RTP, Manuel Carvalho admite que seria melhor que a empresa não existisse, quer para o primeiro-ministro, quer para a “sanidade da vida pública”.

No entanto, é preciso ter cautela nas análises: “Este caso tornou-se muito empolado. As famílias dos ministros podem ter empresas. O que mudou entretanto é que se criou uma cultura de suspeição que tem dois fundamentos: ou queremos um mundo puro, em que os puritanos (extrema-direita) dizem que todos os políticos são culpados até prova em contrário; ou queremos políticos que podem, no máximo, ser académicos e não podem ter empresas, negócios… É nisto que temos de pensar”.

Nuno Teixeira da Silva, ZAP //

1 Comment

  1. Escrutinado?
    Só agora percebem que ele tinha uma firma em nome da mulher?
    Claro que se não sabiam podiam saber. Basta ver em publicacoes.mj.pt/pesquisa.
    Não quiseram saber.
    Socrates é diferente. Ele (engenheiro) tinha aspirações para ser O Presidente. Mataram-no politicamente, do modo à advocacia. Este sorte vai acontecer novamente ao Admiral.
    Presidente só se advogado !

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