A tradicional ideia binária de vida e morte está a ser desafiada por descobertas científicas recentes de que algumas células não só sobrevivem como se transformam em organismos multicelulares inteiramente novos após a morte do hospedeiro — num “terceiro estado” para além da vida e da morte.
A vida e a morte são tradicionalmente vistas como opostas.
Mas o aparecimento de novas formas de vida multicelulares a partir das células de um organismo morto introduz agora um “terceiro estado“, que se situa para além das fronteiras tradicionais da vida e da morte.
Normalmente, os cientistas consideram a morte como a paragem irreversível do funcionamento de um organismo como um todo.
No entanto, práticas como a doação de órgãos põem em evidência o facto de os órgãos, tecidos e células poderem continuar a funcionar mesmo após a morte de um organismo.
Esta resiliência levanta a questão: que mecanismos permitem que certas células continuem a funcionar após a morte de um organismo?
Recentemente, Peter A. Noble, microbiólogo da Universidade do Alabama, e Alex Pozhitkov, bioinformático do Beckman Research Institute, na Califórnia, EUA, investigaram o que acontece aos organismos depois de morrerem.
No seu estudo, cuja revisão final foi publicada em julho na revista Physiology, os investigadores descrevem como certas células, quando lhes são fornecidos nutrientes, oxigénio, bioeletricidade ou sinais bioquímicos, têm a capacidade de se transformar em organismos multicelulares com novas funções após a morte.
O terceiro estado, distinto de outras condições biológicas, não é nem uma simples continuação da vida nem uma descida à decadência, explicam os dois investigadores num artigo no The Conversation.
Vida, morte e algo novo
Ao contrário das transformações evolutivas observadas na natureza, como as lagartas que se tornam borboletas ou os girinos que se transformam em sapos, as células neste terceiro estado não seguem um guião genético predeterminado.
Este terceiro estado não se refere ao comportamento de certos tumores ou organóides, nem às linhas celulares que se podem dividir indefinidamente numa placa de Petri, como as famosas células HeLa que Henrietta Lacks legou à humanidade — que não não desenvolvem novas funções.
Em vez disso, explicam Noble e Pozhitkov, os organismos capazes de assumir este terceiro estado reorganizam-se e desenvolvem novas funções, desafiando as categorizações rígidas dos processos biológicos.
Um dos exemplos deste fenómeno é a criação de “xenobots“ a partir das células da pele de embriões de rãs mortas, que são capazes de se mover e de se auto-replicar através de meios não tradicionais, com comportamentos e funções que a sua forma original como parte de um embrião de rã não teria permitido.
Esta capacidade de adaptação e reorganização autónoma num novo ambiente ilustra a plasticidade inerente e o potencial escondido na vida celular.
Do mesmo modo, as células do pulmão humano demonstraram a capacidade de se auto-montarem em antrobots, entidades multicelulares em miniatura capazes de se moverem e de se auto-repararem, apresentando novas modalidades de comportamento que vão para além dos seus papéis biológicos iniciais.
A sobrevivência e a funcionalidade destas células após a morte dependem de vários fatores, incluindo as condições ambientais, a atividade metabólica e as técnicas de preservação, salientam os dois investigadores.
O seu estudo mostra que diferentes tipos de células têm uma duração de vida pós-morte variável; por exemplo, certas células em seres humanos e animais podem sobreviver e até ser cultivadas vários dias a um mês após a morte, em condições específicas.
Vários fatores influenciam a sobrevivência e o funcionamento de determinadas células e tecidos após a morte de um organismo, incluindo as condições ambientais, a atividade metabólica e técnicas de criopreservação.
Os diferentes tipos de células têm tempos de sobrevivência variáveis. Por exemplo, nos seres humanos, os glóbulos brancos morrem entre 60 e 86 horas após a morte do organismo.
Nos ratos, as células do músculo esquelético podem ser regeneradas 14 dias após a morte, enquanto as células fibroblásticas de ovinos e caprinos podem ser cultivadas até cerca de um mês após a morte.
Também a atividade dos genes relacionados com o stress e a imunidade aumenta significativamente após a morte de um organismo, no que parece ser uma resposta adaptativa para apoiar a sobrevivência das células.
Esta ativação genética sugere que há um amplo potencial para a exploração de vários tipos de células que sofrem transformações significativas após a morte, abrindo novas vias para a compreensão do comportamento celular e da resiliência de certos organismos — que se recusam a morrer e permanecer mortos.
As implicações destas descobertas são vastas, tanto para a biologia como para a medicina, abrindo portas a formas de aproveitar esta adaptabilidade celular em tratamentos médicos — com a ajuda de antropo-robôs, que permitiriam por exemplo a administração de medicamentos ou intervenções médicas sem desencadear reações imunitárias.
A emergência deste terceiro estado, algo novo entre a vida e a morte, desafia os paradigmas da biologia, mostrando que a morte pode não ser tão definitiva como se pensava anteriormente — e que a vida pode continuar sob formas anteriormente inimagináveis.