Entre as saudades da geringonça, os críticos internos e a missão de voltar a ter mais peso nas legislativas, Mariana Mortágua conta já com vários desafios como nova coordenadora do Bloco de Esquerda.
É uma renovação com cheiro a continuidade. Mariana Mortágua, um dos braços direitos de Catarina Martins, é a nova coordenadora do Bloco de Esquerda (BE) e já pode começar a fazer contas aos desafios que terá de enfrentar.
A deputada, que ganhou notoriedade durante as comissões parlamentares de inquérito a banqueiros, tem agora como principal missão levar o partido novamente ao tempo das vacas gordas — uma tarefa que promete ser difícil num contexto em que o partido tem uma influência quase nula devido à maioria absoluta do PS.
Os primeiros sinais de uma quebra foram sentidos em 2019, quando o partido perdeu a representação na Madeira. Em 2021, Marisa Matias teve um mau resultado nas presidenciais, passando de uns históricos 10% dos votos em 2016 para menos de 4%. Na altura, argumentava-se que o cenário seria diferente nas legislativas.
No entanto, a realidade foi bem pior. O Bloco, que chegou a ser a terceira força política e a somar 19 deputados nos tempos da geringonça, foi um dos grandes derrotados nas legislativas de 2022, caindo para o sexto lugar e ficando apenas com cinco deputados. Na altura, os resultados indicaram que os portugueses culparam o BE pela crise gerada pelo chumbo ao Orçamento, castigando o partido nas urnas.
Recuperar a influência
Mas quase um ano e meio depois, o contexto é bem diferente — apesar dos brilharetes orçamentais, a inflação é sentida nas carteiras dos portugueses. O Governo está também constantemente envolvido em polémicas e a dar trambolhões nas sondagens, tendo o Presidente da República já ameaçado várias vezes usar a opção nuclear.
Um cenário de eleições antecipadas pode acabar por ser benéfico para o Bloco, que, no meio do lamaçal de casos e casinhos, pode argumentar que eram os parceiros de esquerda da geringonça que mantinham o PS “na linha”.
E apesar de o PS estar a derrapar nas sondagens, o PSD não está a conseguir afirmar-se como a alternativa óbvia ao Governo, tendo eventualmente de precisar de se juntar ao Chega para formar Governo.
A ameaça de uma possível coligação do PSD com a extrema-direita pode levar a que os eleitores voltem a ver com bons olhos uma solução à esquerda — mas pode também levar a que voltem novamente a apostar no voto útil no PS.
“O PS encontra nessa polarização o seu seguro de vida, na ideia de que a única alternativa é entre PS e extrema-direita. Precisamos de contrariar essa narrativa e criar forma de polarizar sobre alternativas à esquerda que juntem independentes, pessoas da área do Bloco, PS, PCP — é preciso criar essas respostas à esquerda, de forma unitária”, afirma o deputado José Soeiro ao Observador.
Saudades da geringonça?
A ideia de que o futuro do Bloco pode voltar a passar por um acordo com o PS não agrada a todos. Em 2015, o Governo de António Costa fez história ser o primeiro a governar com o apoio das forças mais à esquerda, que até então tinham sido relegadas às franjas e ao papel de oposição permanente.
Mortágua conseguiu uma vitória clara nas eleições e, pelo menos por enquanto, não tem de se preocupar com uma oposição interna muito aguerrida — mas, mesmo assim, há quem critique o “saudosismo” da geringonça no Bloco.
“A geringonça foi uma boa solução na época, mas esse espírito entranhou-se no Bloco, criando um geringoncismo”, explica Carlos Matias, ex-deputado que integrou a moção opositora à de Mortágua, liderada por Pedro Soares.
Se ainda há algumas saudades dos tempos em que a relação com o PS ia de vento em popa, uma coisa parece ser certa — a geringonça não será reatada enquanto António Costa for líder do PS.
Por isso, há quem acredite dentro do BE que a possibilidade de um novo acordo com os socialistas depende de quem suceder a Costa no partido. Pedro Nuno Santos, que foi um dos arquitectos da geringonça e estaria mais aberto a uma reaproximação, já foi tido como o grande favorito, mas ainda temos de esperar para ver o nível de danos que as polémicas com a TAP fizeram nas suas ambições.
Por enquanto, os bloquistas querem esperar para ver — algo que também não agrada aos críticos internos. “Em nome da transparência: qual é o posicionamento sobre um cenário em que o PS não repita a maioria absoluta?”, exige saber Pedro Soares, que acredita que deixar a resposta para depois é “fugir” quando é preciso esclarecer logo quais seriam os termos e as linhas vermelhas para um acordo.
O trauma das autárquicas
Um grande bicho-papão o Bloco continua também a ser a falta de influência a nível autárquico. Em 2021, o partido perdeu grande parte dos vereadores que tinha conseguido em 2017 e viu a esfumar-se a possibilidade de reeditar o acordo com o PS em Lisboa, perante a vitória do PSD.
O partido quer agora preparar-se para as próximas autárquicas e procurar replicar o sucesso com o acordo com Medina ou com a coligação com o Livre e o Volt em Oeiras, que levou à eleição da vereadora independente Carla Castelo.
Dentro do partido admite-se que a ambição dificilmente será fazer do Bloco uma máquina autárquica, dado que o partido não tem essa tradição, mas a meta é acabar com a imagem de que é apenas uma força nacional.
Os dirigentes querem também eliminar a ideia de que o Bloco é um partido urbano e sem apoio nas zonas rurais. “Não estamos satisfeitos, queremos chegar a muito mais gente, queremos enraizar-nos mais no mundo do trabalho, fazer uma ligação forte com os movimentos climáticos, revitalizar o movimento estudantil”, enumera o dirigente Fabian Figueiredo.