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Estado português condenado a pagar 55 mil euros a britânica presa ilegalmente durante quatro meses

Mário Cruz / Lusa

O Estado português foi condenado recentemente a pagar 55 mil euros a uma jovem britânica que esteve ilegalmente privada da liberdade durante quase quatro meses, entre abril e agosto de 2017.

Sophie Grey, então com 25 anos, estava em Portugal de férias com o namorado e um amigo, quando estes se envolveram num diferendo com militares da GNR de Colares, em Sintra. Acusada de ter atiçado dois cães contra um polícia, de o empurrar e insultar, a britânica também acabou detida, noticiou esta quarta-feira o Público.

O Ministério Público imputava-lhe um crime de resistência e coação sobre funcionário e três de injúria agravada, tendo pedido que a jovem ficasse em prisão preventiva a acompanhar o desfecho da investigação.

Considerando os factos “graves” e “geradores de enorme alarme social”, o Ministério Público alegou que havia perigo de perturbação da ordem pública e “um sério perigo de fuga” já que os arguidos eram estrangeiros.

Um juiz de instrução do Tribunal de Sintra considerou “graves” os factos que lhe eram imputados, que admitiam a “imposição de medida privativa da liberdade”. Notava que os arguidos se tinham remetido ao silêncio – a conselho da advogada oficiosa -, abdicando de “oferecer ao tribunal a sua visão pessoal dos factos” e que estavam sem documentos.

“Os traços de personalidade dos arguidos revelados nos factos de que se encontram indiciados e energia criminosa neles empregue faz, fundamentadamente, temer pela continuação da atividade criminosa”, considerou o juiz que decretou a prisão preventiva dos três jovens.

Admitiu, porém, como o próprio Ministério Público, que se os jovens viessem a indicar uma morada e uma pessoa responsável em Portugal pudessem passar para prisão domiciliária.

Sophie Grey foi encaminhada a 20 de abril 2017 para o Estabelecimento Prisional de Tires. Sete dias depois, deu entrada de um requerimento a informar o tribunal que tinha obtido uma morada de amigos da família onde poderia residir provisoriamente, o endereço onde residia a família em Monmouth, no País de Gales, e que tinha o passaporte na prisão.

Informou ainda que o pai estaria disponível para prestar uma caução, se o juiz entendesse que a mesma era necessária.

Nesse dia, uma procuradora defendeu que fosse aplicada a Sophie Grey o termo de identidade e residência (TIR), na morada que indicou em Portugal, e uma caução. Mas o juiz decide pedir um relatório aos serviços prisionais para analisar a viabilidade de aplicar a prisão domiciliária.

Sem ter conhecimento desse despacho, os advogados da galesa pediram a 02 de maio a audição da cliente, a revogação da prisão preventiva e a imposição de uma caução. Defendiam que a manutenção da prisão preventiva era “absolutamente desproporcionada” face à gravidade dos crimes que lhe imputavam e que não era previsível que lhe fosse aplicada qualquer pena de prisão efetiva já que não tinha cadastro criminal.

A defesa argumentou igualmente que não podia ser prejudicada por ser uma cidadã estrangeira e, como tal, não ter residência em Portugal.

Dois dias mais tarde, o juiz respondeu dizendo que a arguida já tinha tido oportunidade de prestar declarações e que “neste momento processual não cabe ao juiz de instrução ouvir novamente a arguida”, insistindo que aguardaria pelo relatório dos serviços prisionais.

Nomeação de uma intérprete

Foram, no entanto, os advogados de Sophie Grey que constataram a 10 de maio que o pedido de relatório ainda não tinha dado entrada nos serviços prisionais de Tires e que não tinha sido solicitado a nomeação de uma intérprete, uma falha ultrapassada nesse dia.

Mas cinco dias mais tarde, os serviços prisionais queixavam-se ao tribunal que o contacto da tradutora nomeada não estava atribuído. A 19 de maio, os advogados de defesa apresentaram um requerimento a pedir a nomeação de outro intérprete.

Mas, lê-se no Público, o juiz não gostou e num despacho de 24 de maio argumentou que “os constantes requerimentos dirigidos ao juiz de instrução vêm perturbando e prejudicando a celeridade que se impõe aos presentes autos, causando remessas e devoluções entre serviços que não permitem a realização das diligências necessárias”.

Só a 14 de junho é que os serviços prisionais concluíram o relatório. Mas, nessa altura, já o Ministério Público tinha mudado de posição. Não só desistiu da caução, como considerou mesmo que a prisão domiciliária com vigilância eletrónica “não se revela adequada” face ao perigo de fuga.

O juiz, por seu lado, notou que a morada apresentada por Sophie Grey era a habitação de uma jovem de 23 anos, desempregada, com a qual a britânica “não tem qualquer relação de parentesco” e com quem mantém laços de amizade “meramente pontuais”. E concluiu: “Não existem condições para a substituição da medida de coação”.

A jovem recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que a 17 de agosto ordenou que fosse “restituída de imediato à liberdade”. Os juízes desembargadores realçaram que a “prisão preventiva é inadmissível” no caso e que mesmo a obrigação de permanência na habitação seria “excessiva”. Determinaram o TIR e uma caução de três mil euros.

Nessa altura, o Ministério Público acusara a galesa de um crime de resistência e coação sobre funcionário e três de injúria agravada. Já estava em liberdade há quase três meses, quando, em novembro de 2017, o tribunal de Sintra a condenou por um crime de ofensa à integridade física qualificada, a uma pena de seis meses de prisão, suspensa durante um ano. Optou por não recorrer.

Mas, continuou o Público, a jovem não baixou os braços contra a injustiça que acreditava ter sido alvo, apresentando em 2018 uma ação contra o Estado português, aproveitando um mecanismo de compensação existente no Código Processo Penal e que pretende indemnizar cidadãos alvos de prisão ilegal.

A juíza Isabel Lourenço, do Juízo Central Cível de Lisboa, deu-lhe razão, numa sentença assinada no passado dia 16 de outubro.

A magistrada concluiu que a galesa “em virtude da ilegal privação da liberdade foi gravemente atingida na sua integridade pessoal pois, durante quatro meses esteve presa, longe do seu país, da sua família que não podia visitá-la com regularidade, num local em que poucas pessoas falavam a sua língua, sem compreender, senão em momento posterior, as regras do estabelecimento prisional, mormente no que tange à possibilidade de comunicar telefonicamente com a sua família, angustiada pela sua situação, que não compreendia, nem aderia”.

ZAP //

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