O tempo médio que um doente tem de esperar, em Portugal, para receber um rim no Serviço Nacional de Saúde são cinco anos e meio. Não há outra forma legal de encontrar um órgão, mas existem atalhos.
Receber um rim oriundo de uma rede de tráfico não é crime – mas é o que se pretende alterar com a proposta de lei do governo que criminaliza o tráfico de órgãos – e cujo diploma, proposto pelo governo, será votado no Parlamento esta sexta-feira. Quem aceitar transplantar-se com um órgão obtido no mercado negro também será punido.
É o último passo para seguir as recomendações da Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de órgãos humanos, que Portugal ratificou em novembro de 2018 e que começou a produzir efeitos legais a 1 de março de 2019. Tem como objetivo a cooperação entre os países para acabar com as redes criminosas que lucram milhões.
De acordo com os últimos dados avançados pelo Diário de Notícias, há 2186 pessoas portuguesas à espera de um rim e o número total de órgãos transplantados desceu: em 2017 registaram-se 895 transplantes e no ano passado foram 829. Os dados apresentados apontam para uma média mais curta no tempo de espera por um rim: 53% dos doentes renais são transplantados em menos de dois anos.
Mas ainda há uma taxa de 7,5% de pacientes que têm de esperar mais de cinco anos. Há menos órgãos transplantados de dadores falecidos (757) e de dadores vivos (72).
O desespero alimenta um dos negócios ilegais mais lucrativos do mundo. “A cada seis minutos um órgão humano é vendido no mercado negro. Os rins representam 80 por cento do tráfico de órgãos humanos”, é o primeiro dado do documentário Tales from the Organ Trade. O filme foi lançado em 2013 mas, seis anos depois, o cenário mantém-se. O crime de tráfico de órgãos humanos está entre os dez crimes mais cometidos a nível mundial.
“Entre 5% e 10% dos transplantes renais, por exemplo, são realizados através do comércio de órgãos. O preço varia entre os 62 mil euros e os 140 mil euros“, disse a perita do Instituto Português do Sangue Ana Pires da Silva, no ano passado, durante o seminário Tráfico de Órgãos Humanos, onde considerou que “o tráfico de órgãos é um capítulo negro da história da transplantação”.
A Organização Mundial da Saúde estima que haja dez mil casos de retirada ilícita de órgãos humanos de pessoas vivas ou mortas para transplantes ou outros fins. A Índia, o Paquistão e a China são os países onde há mais turismo de transplantação.
As Filipinas, Tailândia e Afeganistão são outros países que entraram recentemente na rota do tráfico de órgãos. Os refugiados são as novas vítimas das redes criminosas que se dedicam ao tráfico de seres humanos, muitas vezes para recolha de órgãos.
Em Portugal, não há registos formais de tráfico de órgãos humanos, apenas testemunhos de médicos que desconfiaram da origem de um órgão transplantado. Até que o diploma seja homologado pelo Presidente da República está ainda em curso uma alteração ao Código Deontológico dos médicos para que estes possam quebrar o sigilo a que estão obrigados caso detetem uma situação de transplante ilegal.
Os casos de transplantes ilegais detetados são poucos e não estão registados. Em 2015, Fernando Macário, ex-presidente da SPT, falava na possibilidade de existir “um caso por ano” em Portugal. A Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras confirmaram não existir nenhum caso em investigação ou de conhecimento das autoridades.
O que diz a proposta de lei
“O ordenamento jurídico‑penal português não consagra o tráfico de órgãos humanos, com a densidade axiológica prevista na mencionada convenção, como uma incriminação autónoma. Assim, introduz-se no Código Penal um novo tipo legal – o crime de tráfico de órgãos humanos – para conformar o ordenamento jurídico interno às exigências da convenção”, lê-se na proposta de lei n.º182/XIII.
A convenção identifica os comportamentos que devem ser criminalizados: “Remoção ilícita de órgãos humanos; utilização de órgãos removidos de forma ilícita para fins de implante ou para outros fins além do implante; implante de órgãos fora do sistema nacional de transplantes; solicitação ilícita, recrutamento, oferta e pedido de vantagens; preparação, preservação, armazenamento, transporte, transferência, receção, importação e exportação de órgãos humanos removidos ilicitamente.”
As principais alterações são a inclusão do crime de tráfico de órgãos humanos que se insere no capítulo dedicado aos crimes contra a integridade física. “Quem extrair órgão humano, de dador vivo, sem o seu consentimento livre, informado e específico ou de dador; quando, em troca da extração, se prometer ou der ao dador vivo, ou a terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou estas as tenham recebido” arrisca uma pena de prisão de três a dez anos.
A mesma pena é aplicada a quem, tendo conhecimento destes crimes, “preparar, presentear, armazenar, transportar, transferir, receber, importar ou exportar órgão humano extraído nessas condições ou utilizar órgão humano, ou parte, tecido ou células deste para fim de transplantação, investigação científica ou outros fins não terapêuticos”.
Também comete o crime “quem aliciar dador ou recetor” e “quem extrair, atribuir ou transplantar órgão humano, em violação das legis artis ou fora das condições legais” – os cirurgiões ou médicos responsáveis pelo transplante serão punidos com penas de prisão de um a cinco anos, no mínimo, mas o diploma contempla uma pena mais pesada se os crimes acontecerem, por exemplo, no contexto de uma organização criminosa.
Todos os partidos com assento parlamentar vão votar a favor do diploma proposto pelo Governo. Sara Madruga da Costa, do PSD, considera que a iniciativa “só peca por tardia. Há muito tempo que já poderíamos ter incluída na nossa legislação a criminalização do tráfico de órgão humanos”, afirmou.
Já o CDS, através da deputada Vânia Dias da Silva, vai sugerir uma alteração ao diploma, no sentido do crime se inserir “no capítulo que criminaliza o tráfico de seres humanos” e não no capítulo dedicado aos crimes contra a integridade física, como é proposto pelo Governo.